Restauro da sede do Instituto de Arquitetos do Brasil

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| Silvio Oksman e Beatriz Vicino |


O edifício do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP) foi construído nos anos 1950 na área central da cidade de São Paulo, com projeto de uma equipe de arquitetos coordenada por Rino Levi, vencedores de um concurso. Essa construção representou a efervescência cultural dos anos 60, concentrando uma grande parte dos artistas e discussões de vanguarda no seu subsolo, no “Clubinho dos Artistas”. O local sempre foi importante para a discussão da arquitetura e da cidade, tanto pela presença da sede do IAB-SP, quanto pelos escritórios que ali se estabeleceram, como, por exemplo, os de Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Rino Levi. O edifício foi reconhecido como Patrimônio Cultural do Estado pelo Condephaat em 2002.

A grande marquise em balanço sobre a calçada apresentou sinais de problemas estruturais no início dos anos 2010 e, devido à urgência em recuperá-la, foi elaborada a primeira parte de um projeto de restauro, iniciado em 2014. O projeto de restauro se desenvolveu a partir do estudo aprofundado do projeto executivo de arquitetura original e de prospecções in loco que serviram de base para o processo de restauro. O resultado dos trabalhos, além de tratar da estrutura, recupera o sistema de captação de águas pluviais, utilizando de linguagem contemporânea[1].


Um dos primeiros edifícios modernos em São Paulo, a sede do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-SP), foi projetada em 1946 pelos arquitetos Roberto Cerqueira Cesar, Jacob Ruchti, Miguel Forte, Galiano Ciampaglia, Abelardo de Souza, Hélio Duarte e Zenon Lotufo, liderados por Rino Levi. Projeto vencedor de um concurso nacional que teve como júri Oscar Niemeyer, Eduardo Kneese de Melo, Hélio Uchoa e Firmino Saldanha, o edifício foi inaugurado em 1953.

Trata-se de uma construção de nove pavimentos construída em concreto armado. O subsolo, térreo, restaurante e mezanino fazem parte da sede do IAB-SP. Os demais pavimentos são compostos por salas comerciais, tradicionalmente ocupadas por arquitetos ao longo de toda a sua existência.

É um edifício que reafirma, a partir de sua construção, aqueles pontos definidos por Le Corbusier como essência da arquitetura moderna. Seu térreo em pilotis é totalmente transparente com vedos em vidros fixos. A estrutura independente é evidente no deslocamento dos planos de fechamento nos pavimentos do restaurante e mezanino. Todos os andares de escritórios possuem janelas piso teto em fita, e sua estrutura permite uma planta livre com diferentes possibilidades de ocupação e organização dos pavimentos. A marquise sobre a calçada apresentava, quando da construção do edifício, áreas ajardinadas.

Concomitantemente ao processo de abandono do centro velho da cidade de São Paulo, a partir da década de 70, o edifício também sofreu um processo de degradação e apresentava sinais de abandono, com aparentes problemas estruturais e de infraestrutura.

Questões de restauro da arquitetura moderna

É necessário pontuar algumas questões gerais em relação à metodologia e prática do restauro da arquitetura moderna.

Primeiramente, o estudo dos projetos executivos usados na construção do edifício é fundamental para se compreender o seu partido e sua materialidade. Assim, pode-se reconhecer as diversas outras camadas que se sobrepuseram nos diversos momentos pelos quais a obra passou no tempo. Contudo, há que se pontuar que esse estudo dos projetos não deve, jamais, servir de manual para a busca de um estado supostamente original. Suas informações servem de base metodológica para a prática de projeto de restauro.

Em se tratando da arquitetura moderna e de sua preservação – assunto relativamente recente –, esse caso revela as possibilidades de um projeto contemporâneo. Os trabalhos de 2014 dialogam com a preexistência; eles não se impõem, mas também não se omitem.

Processo de elaboração do projeto de restauro

O projeto se iniciou a partir das primeiras prospecções no edifício, em conjunto com a pesquisa dos projetos de arquitetura, estrutura, elétrica e hidráulica deste edifício, nos arquivos do IAB e da FAUUSP. Essa pesquisa revelou os princípios que orientaram a construção e foi essencial para definir as intervenções contemporâneas. A metodologia inicial foi baseada na já citada pesquisa documental e em um procedimento arqueológico. A remoção cuidadosa das camadas de acabamentos permitiu compreender as diversas intervenções que o prédio sofreu e que não foram devidamente registradas, reconstituindo, assim, parte da história do edifício.

Um grande desafio foi criar um cronograma de intervenções independentes. Como o projeto depende de patrocínios e doações, ele teve de ser pensado através de intervenções que poderiam ser completadas individualmente. Essa foi a primeira fase de intervenção. As próximas serão realizadas de acordo com a disponibilidade de recursos.

O projeto e suas soluções técnicas

1| Recuperação das marquises

A falta de manutenção da impermeabilização levou à infiltração de água nos caixões perdidos das marquises. Na marquise inferior, que se debruça sobre a calçada, havia a suspeita, desde 2010, de que o sobrepeso causado pela água poderia comprometer sua estabilidade, causando um colapso estrutural.  Neste sentido, foi providenciado escoramento da marquise inferior até que se constatasse e resolvesse a questão como um todo – impermeabilização e reforço estrutural (Fig.1).

Fig.1. Escoramento da marquise inferior (fonte: foto de Nelson Kon)

Fig.1. Escoramento da marquise inferior (fonte: foto de Nelson Kon)

a) Estrutura

A remoção dos acabamentos de piso e do enchimento nas marquises foi feita por camadas, para identificar as intervenções executadas ao longo do tempo e evitar movimentação brusca da estrutura.

Na marquise inferior, que apresentava evidências de problemas estruturais, foi realizado um levantamento topográfico com a laje carregada e outro logo após o seu esvaziamento. Segundo o consultor de estrutura do projeto, a variação de 5mm apresentada estava dentro dos limites esperados, o que comprova não haver problemas estruturais significativos, apenas alguns pontos de armadura exposta. Os caixões perdidos, após serem completamente esvaziados e removidas todas as camadas de enchimento e de impermeabilização, foram impermeabilizados e preenchidos com placas de poliestireno expandido, material leve, para evitar sobrecarga. Após a conclusão do trabalho, foi realizada nova medição topográfica que confirmou a estabilidade estrutural. Assim, foi possível remover por completo o escoramento que interferia na circulação pública e, principalmente, na percepção do edifício como um todo.

Na área dos caixões perdidos foram realizadas duas camadas de impermeabilização.  A primeira diretamente na laje de fundo e a segunda sobre o novo contrapiso. A fim de garantir o controle do sistema de impermeabilização da marquise, foram inseridos drenos na laje inferior: caso ocorram problemas futuros com a impermeabilização da superfície superior, o dreno trabalha no sentido de evitar o acumulo de água na estrutura por um lado, e serve também como indicador do problema existente: caso se verifique gotejamento de água a partir dos drenos, sabe-se da existência de algum problema na impermeabilização e a manutenção pode ser feita apenas no caixão perdido referente àquele dreno.

b) Captação de águas pluviais

O projeto original do edifício previa a captação das águas pluviais da marquise inferior a partir da construção de jardineiras. Estas funcionariam como retentores da água da superfície da laje, e as encaminhariam para as prumadas que foram concretadas nos pilares (Fig.2).

Fig.2. Detalhamento do sistema de captação de águas pluviais, segundo o projeto original (fonte: acervo FAUUSP)

Fig.2. Detalhamento do sistema de captação de águas pluviais, segundo o projeto original (fonte: acervo FAUUSP)

Há poucos registros fotográficos que mostram a existência de vegetação na marquise, e não foi possível encontrar nenhum registro da forma como estavam plantadas (Fig.3). A sucessiva remoção de camadas de acabamento de piso e de enchimentos da marquise inferior revelou a presença das alvenarias que configuravam os jardins previstos no projeto original (Fig.4). Entretanto, estas jardineiras estavam preenchidas com entulho, sem desempenhar a sua função. Nas diversas intervenções realizadas no edifício, este sistema de captação em algum momento foi abandonado, e foram instalados ralos superficiais conectados às prumadas originais.

Fig.3. Vegetação na marquise inferior (fonte: acervo IAB-SP)

Fig.3. Vegetação na marquise inferior (fonte: acervo IAB-SP)

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Fig.4. Alvenarias dos jardins previstos no projeto original, encontradas durante a remoção dos acabamentos e enchimentos da marquise (fonte: acervo IAB-SP)

A proposta de intervenção considera a existência das jardineiras e a possibilidade de recuperar o sistema de captação de águas pluviais proposto originalmente. Desta forma, o novo piso proposto está assentado sobre o contrapiso da marquise e, na área das jardineiras, foi instalado como piso elevado drenante, com juntas abertas, permitindo a drenagem da água.

No caso da marquise superior, a captação de água pluvial foi feita a partir de um ralo linear que está conectado às prumadas concretadas nos pilares (Fig.5).

Fig.6. Detalhe das soluções de restauro para o piso da marquise inferior (fonte: acervo Metrópole Arquitetos)

Fig.5. Detalhe das soluções de restauro para o piso da marquise inferior (fonte: acervo Metrópole Arquitetos)

c) Acabamentos

Foram encontradas duas camadas sobrepostas de acabamento de piso da marquise inferior. A primeira, em pastilhas de vidro cor caramelo, estava sobreposta a outra, mais antiga, de material cerâmico. O piso com pastilha de vidro, por sua permanência ao longo de mais de 50 anos, parecia ser a única camada de piso existente, já que não há registros fotográficos do piso cerâmico. Em ambos os casos, tentou-se recuperar o piso existente, mas sua preservação não foi possível.

As pastilhas de vidro azuis especificadas no projeto executivo para revestimento do topo das marquises foram substituídas por pastilhas de porcelana azuis. Não há registro de quando esta obra foi realizada, porém, pôde-se comprovar este fato a partir de um pedaço de entulho encontrado no preenchimento das jardineiras. Além disto, a análise da obra de Rino Levi mostra o uso sistemático de pastilhas de vidro nos acabamentos.

Assim, optou-se por revestir as bordas da marquise com a mesma pastilha de vidro azul encontrada, que continua em produção regular, remetendo à primeira camada aplicada. O piso da marquise recebeu novo revestimento de placas pré-moldadas de concreto 60x60cm. Nas áreas onde havia jardineiras na marquise inferior, as placas de concreto são elevadas para permitir o escoamento das águas pluviais, recuperando o sistema original.

d) Reabilitação interna de tubulações

O processo de recomposição das tubulações foi realizado em cinco etapas principais. Primeiramente, foi realizada uma limpeza interna das tubulações para remoção de sujeiras e incrustações aderidas nas paredes internas do encanamento de ferro, através de raspadores metálicos e de borracha que não prejudiquem o concreto. Após a limpeza, uma lavagem interna feita com hidrojato de média potência, removeu materiais e partículas aderidos à superfície interna da tubulação que possam ter permanecido após a primeira etapa. Com as tubulações desobstruídas, uma vídeo-inspeção foi realizada para diagnosticar a situação interna das tubulações, permitindo confirmar o tipo de manta e resina utilizadas no revestimento interno. Para o novo revestimento foi utilizada uma técnica de inversão de manta de tecido poliéster embebida com resina epóxi, com posterior aplicação de pressão no interior da tubulação, fazendo com que a manta e a resina se moldem às paredes internas, de maneira a criar um novo revestimento interno de 3,0mm. Assim, é criado um novo tubo interno à tubulação já existente no pilar.

e) Guarda-corpos

O projeto original previa o chumbamento dos guarda-corpos na face superior da estrutura da laje das marquises. Entretanto, verificou-se que eles foram fixados no topo das marquises em uma argamassa de regularização que não resistiu ao momento gerado na base do guarda-corpo, comprometendo sua fixação. O guarda-corpo da marquise estava em péssimo estado de conservação, por ter sido construído a partir da solda de duas cantoneiras metálicas. No encontro das duas peças, pequenos vazamentos de água deram início a um processo de oxidação na parte interna, que acarretou na fragilização das peças e na impossibilidade de sua recuperação. Levando em consideração a imagem consolidada do edifício, optou-se pela substituição por um guarda-corpo com imagem semelhante àquele removido. Foram propostas pequenas adequações nas peças que o constituem, agora em tubos, e no sistema de fixação, assegurando sua estabilidade. Para isso, uma nova peça em aço foi chumbada no concreto, como uma espera, onde o guarda-corpo é encaixado e parafusado, facilitando futuras manutenções (Fig.6).

Fig.6. Detalhe da fixação do guarda-corpo (fonte: acervo Metrópole Arquitetos)

Fig.6. Detalhe da fixação do guarda-corpo (fonte: acervo Metrópole Arquitetos)

f) Alvenaria de tijolo aparente

A alvenaria de tijolo aparente no pavimento do restaurante e no mezanino tem sua face externa com tijolo aparente, sem nenhum acabamento. Sua face interna foi pintada de cor branca e não há registro do momento desta pintura, constatando-se por meio de fotos que esta ocorreu na década de 50.

Para a face interna foram feitas diversas tentativas de remoção da pintura branca – por abrasão, por processo químico e térmico –, que não apresentaram bom resultado. Corria-se o risco de danificar ainda mais os tijolos. Considerando que a parede já está pintada há décadas, propôs-se apenas a limpeza da parede, remoção de buchas, parafusos e adesivos, e repintura com tinta acrílica branca.

g) Mural de concreto

O mural de concreto do arquiteto Ubirajara Ribeiro foi instalado no pavimento do restaurante após a conclusão do edifício. O tombamento considera o painel como parte do conjunto. Fotos de arquivo mostram que o painel original apresentava áreas de concreto aparente e o fundo era em alvenaria pintada de branco. Não há registro de quando o painel foi integralmente pintado de branco, fato que tirou seu aspecto de uma topografia construída sobre um plano, com nuances de luz e sombra. A remoção da tinta branca se mostrou possível com processo de raspagem, sem aplicação de produtos químicos, e posterior jateamento de água em baixa pressão. Assim, conseguiu-se recuperar o seu aspecto original (Fig.7).

Fig.7. Mural de concreto do arquiteto Ubirajara Ribeiro em três momentos: a proposta original, a pintura posterior com tinta branca e, finalmente, a situação atual, após o recente restauro(fonte: acervos IAB-SP e Metrópole Arquitetos)

Fig.7. Mural de concreto do arquiteto Ubirajara Ribeiro em três momentos: a proposta original, a pintura posterior com tinta branca e, finalmente, a situação atual, após o recente restauro(fonte: acervos IAB-SP e Metrópole Arquitetos)

Esse projeto de restauro mostra a necessidade de compreensão do edifício e do conhecimento das possibilidades técnicas atuais de melhor desempenho, no sentido de garantir uma obra de qualidade impecável e que também preserve o patrimônio cultural.

O edifício do IAB-SP é responsável pela ocorrência de um cluster arquitetônico nos seus arredores desde os anos 50, e símbolo da arquitetura moderna. Além do seu restauro físico, o projeto representa um novo momento de renovação para a discussão e produção arquitetônica no Brasil.


Ficha Técnica

Nome do Edifício: IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo)

Localização: Rua Bento Freitas, nº 306, São Paulo / SP, Brasil

Cliente: IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil)

Responsável técnico: Silvio Oksman

Equipe de arquitetura: Arquitetos Silvio Oksman, Beatriz Vicino e Samira Chahin. Estagiárias Bárbara Fernandes, Laura Cardoso e Marjorie Nasser Prandini

Prospecções e construções: Pires Giovanetti Guardia Eng. e Arq.

Consultoria de instalações: Sandretec Consultoria SC LTDA

Consultoria de estrutura: Engº Fabio Janini

Restauração dos encanamentos: Repipe

Parceiros: Concresteel, Reka Iluminação, Vidrotil, Deca, Cebrace, UBV.

Patrocinadores:

Projeto de restauro do edifício sede do IAB-SP – Pronac: 108603

CESP – COMPANHIA ENERGÉTICA DE SÃO PAULO

ITAÚ UNIBANCO FINANCEIRA S.A. – CRÉDITO, FINANCIAMENTO E INVESTIMENTO

 Áreas

Terreno = 282,00 m²

Construída = 3.757,45 m²

Projeto Original: 1953

Conclusão do projeto: 04/2014

Conclusão da obra: 06/2015


Notas

[1] O projeto de restauro da sede do IAB-SP recebeu a medalha de prata do Prêmio Internacional Domus, Restauro e Conservação Fassa Bartolo (Premio Internazionale Domus, Restauro e Conservazione Fassa Bartolo), em cerimônia de premiação durante o Salão de Restauro de Ferrara de 2016. As pranchas do projeto, apresentadas ao concurso, estão disponíveis no site oficial do Prêmio [Nota das editoras]. 


Silvio Oksman

Graduação (1998) e Mestrado (2011) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAUUSP).

Beatriz Vicino

Graduação (2013) e Especialização (2015) em Arquitetura e Urbanismo pela Escola da Cidade. 


logo_rr_pp      EDIÇÃO n.0 2016    

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