| Laís Silva Amorim e Manoela Rossinetti Rufinoni |
A Biblioteca Mário de Andrade (BMA) foi construída entre 1935 e 1942 pelo arquiteto francês Jacques Emile Paul Pilon (1905-1962), no momento em que o centro histórico da cidade de São Paulo passava por incisivas transformações arquitetônicas e urbanas. Como um dos marcos dessas transformações, a BMA assinala a vinda de profissionais estrangeiros na construção civil e de linguagens arquitetônicas que começavam a repercutir em solo brasileiro, além de evidenciar a verticalização do centro histórico e a busca pela interação entre espaços públicos e privados, delineando um significativo espaço de convivência e de sociabilidade urbana. Devido às características arquitetônicas e à particular inserção urbana da BMA (edifício tombado pelo CONDEPHAAT e pelo CONPRESP), o estudo das ações de preservação e de restauro desse patrimônio assume grande relevância, pois impulsiona o debate sobre a ampliação das ações de tutela para além do edifício isolado e, consequentemente, para a necessidade de construirmos relações entre as políticas de preservação, as diretrizes de restauro e as normativas de planejamento urbano.
Em linhas gerais, as narrativas históricas sobre os primeiros passos da arquitetura no Brasil buscaram evidenciar determinadas formas construtivas, os atores envolvidos em sua produção e os respectivos desdobramentos no ordenamento e na concepção dos espaços ao longo do tempo. Assim, dos abrigos construídos pelos povos originários às principais obras edificadas durante o período colonial – engenhos, fazendas, casas bandeiristas, igrejas, fortificações etc. –, tais narrativas têm buscado compreender tanto as formas de adaptação ao meio como as repercussões de uma estrutura social colonizadora e escravista na produção dos espaços urbanos [1]. A partir da mudança gradual de uma sociedade escravista e agrária para uma sociedade assalariada e urbana – processo que se intensificou no final do século XIX –, as tipologias e as características formais das construções também se modificaram significativamente. Cidades que até então possuíam um caráter de entreposto comercial, com construções residenciais e comerciais de pequeno porte, passaram a receber as elites agrárias e a sediar a diversificação de seus investimentos e negócios – como as atividades industrial e imobiliária –, incorporando demandas de modernização estrutural e estética e atraindo novas funções urbanas. A arquitetura, então, se diversificou para atender às novas necessidades: casarões e loteamentos para as elites, construções industriais, vilas operárias e outros edifícios para comportar os novos usos que a cidade necessitava e atender à crescente população [2].
Neste contexto, no início do século XX, a cidade de São Paulo assistiu a um crescimento vertiginoso e espraiado [3], devido aos novos usos, à industrialização, aos loteamentos e ao acelerado processo de urbanização [4]. Esse grande crescimento, no entanto, ao ocorrer de forma desordenada, desencadeou a especulação imobiliária e impulsionou a necessidade de regulamentações mais precisas na legislação urbana, que passaria a oferecer, entre outras medidas, a normatização da verticalização como uma das estratégias para a acomodação dos interesses econômicos frente ao valor da terra [5]. A promulgação do Código de Obras Arthur Saboya, em 1929, foi um importante marco nesse sentido [6].
As possibilidades de investimento impulsionadas pela verticalização, por sua vez, fariam da região central da cidade de São Paulo um dos nichos de mercado imobiliário mais próspero do país [7], evidenciando um novo padrão de cultura urbana, pautado também por referências de progresso e de civilização de tendência norte-americana [8]. Tais fatores, aliados às significativas transformações econômicas, políticas e socioculturais que permearam o florescimento das vanguardas artísticas e da própria arquitetura de tendência moderna, sobretudo a partir da década de 1930, aos poucos levariam a cidade de São Paulo a deixar de lado o modelo europeu de modernização urbana, em voga entre o final do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX [9].
Segundo Sabrina Fontenele Costa, essa nova legislação [10], o novo desenho urbano proposto por Prestes Maia e a arquitetura moderna que surgiram nesse período, estabeleceram não somente novas feições urbanas para o centro da cidade, mas também novas funções para os térreos dos edifícios, possibilitando uma intensa relação entre a arquitetura e o espaço urbano, explorando a interação entre o espaço público e o privado, e trazendo uma novata e considerável urbanidade para o centro de São Paulo.
Neste contexto, arquitetos e profissionais da construção civil de origem estrangeira, recém-instalados no país, se beneficiaram desse momento de significativas transformações urbanas e culturais, fazendo-se presentes na construção de uma nova cidade, em novos moldes. Oriundos de diversos países, vieram a São Paulo por diferentes motivos. Ora fugindo de um cenário de perseguições étnicas e raciais e da precariedade da vida entre guerras, ora buscando melhores oportunidades de trabalho [11]. Entre os mais expressivos, destacamos o autor do projeto da Biblioteca Mário de Andrade, objeto central deste artigo: o arquiteto francês Jacques Emile Paul Pilon (1905-1962); profissional que, uma vez aprovado e desejado pela elite paulistana [12], pôde exercer a sua arquitetura e o seu empreendedorismo em toda a cidade de São Paulo [13].
Jacques Pilon, desde a sua chegada ao Brasil em 1933 [14], adotou diferentes técnicas e tendências arquitetônicas, demonstrando o seu desenvolvimento como arquiteto e as suas referências projetuais. Entre algumas das notáveis obras em que participou na capital paulista, podemos citar: edifício residencial São Luís, edifício Stella, edifício Edlu, hotel Jaraguá, edifício sede da Aliança Francesa, condomínio Paulicéia e São Carlos do Pinhal e Liceu Pasteur (Casa Santos Dumont). Um dos edifícios mais importantes projetados por Jacques Pilon, contudo, que simboliza o processo de verticalização do centro histórico, as transformações urbanas impulsionadas pelo surto imobiliário e a adoção de propostas arquitetônicas pautadas pela interação entre espaços públicos e privados é a Biblioteca Mário de Andrade.
O edifício foi construído pela PILMAT, construtora e escritório de arquitetura de Pilon e Matarazzo Neto, entre 1935 e 1942 [15], com o objetivo de abrigar o acervo da Biblioteca Mário de Andrade (BMA), formado pelos acervos da Biblioteca Municipal de São Paulo e da Biblioteca Pública do Estado. O acervo em questão, que antigamente ficava em um edifício da Câmara Municipal de São Paulo, cresceu a tal ponto que o edifício da Câmara não o comportou mais, sendo necessário propor um novo local para a BMA [16]. Além de abrigar todo o acervo no espaço delimitado na Praça Dom José Gaspar, o projeto do prédio da BMA tinha o intuito de representar uma ‘nova São Paulo’, uma cidade modernizada, industrializada e atenta às novas tendências mundiais [17]. Por esse motivo, valendo-se de uma linguagem arquitetônica pautada pela jovem estética moderna, além dos espaços para leitura, guarda e conservação de acervo, foram projetadas salas para pesquisas e cursos e também um auditório, sinalizando a função de agregação social e cultural que uma biblioteca deveria assumir em uma cidade que se pretendia verdadeiramente cosmopolita [18].
O estilo dito ‘moderno’ adotado no projeto da BMA possui raízes na produção arquitetônica francesa advinda da Escola de Belas Artes, na qual Pilon havia se formado [19]. A escola parisiense, com uma formação robusta tradicionalmente baseada em teorias e práticas voltadas para releituras da Antiguidade Clássica, passou a ter como ícones, entre 1830 e 1930, os arquitetos Léon Vaudoyer, Jean-Louis Pascal e Henri Labrouste. Estes propunham um novo olhar para a arquitetura, além das releituras classicizantes, buscando referências externas à escola e levando em consideração as formas proporcionais, a funcionalidade e a estrutura [20]. Os arquitetos acima citados, baseados no novo modelo proposto por Charles Percier, arquiteto que ganhou o Prix de Rome [21] em 1786, propunham uma arquitetura pautada por formas geométricas puras, simetria, perspectiva e circulação de pessoas interna e externamente ao edifício, mostrando como essa arquitetura ‘moderna’, juntamente com os aprendizados externos à escola, se diferenciava do padrão anterior de ensino, pautado pelas rígidas releituras da arquitetura clássica.
Assim, na Biblioteca Mário de Andrade, Jacques Pilon, recém-formado arquiteto na École des Beaux-Arts de Paris, estabeleceu um projeto pautado pelos seus aprendizados franceses, combinando as tradições clássicas acadêmicas da Escola de Belas Artes e os movimentos artísticos de vanguarda, como o cubismo, o futurismo e o expressionismo [22]. Essa fusão de conceitos e de elementos pode ser verificada na simplificação formal e na hierarquização geométrica e decorativa de sua arquitetura, herdadas da Beaux-Arts, afastando-se da linguagem arquitetônica historicista ou ‘eclética’, e pontuando a tendência que se convencionou denominar Art Déco [23].
Além desses atributos, o edifício também é marcado por modernas técnicas de construção, como a estrutura de concreto armado, as prumadas para a distribuição de instalações e a relação estabelecida entre as circulações externa e interna. Desse modo, podemos entender como o arquiteto compôs a volumetria, com a presença de balcões, formas simples internas e a sobreposição de diferentes volumes a fim de abrigar todo o programa e compor uma lógica de inserção urbana na praça delimitada pelas ruas da Consolação, Avenida São Luiz e Rua Bráulio Gomes [24].
Ainda com relação à inserção urbana, é importante ressaltar que a Biblioteca Mário de Andrade viria a usufruir da intensa relação que se estabeleceria entre os arranha-céus modernos, construídos entre as décadas de 1930 e 1960, e o tecido urbano do centro novo de São Paulo, conforme destacou Sabrina Studart Fontenele Costa [25]. Este dado é particularmente importante, pois a biblioteca inseriu-se em uma praça que se configurou como um entroncamento de conexões entre espaços públicos e privados, por meio de galerias e térreos abertos para passagens de pedestres, que promoveram uma intensa vida urbana e cultural na região. Edifícios localizados nos arredores da biblioteca, como as galerias Metrópole, das Artes, 7 de Abril, Ipê e Nova Barão, além dos edifícios do conjunto Zarvos e Ambassador, do edifício Louvre e do edifício Conde Silvio Penteado, cuja permeabilidade do pavimento térreo se conectava ao edifício Copan, contribuíram para a configuração de um espaço urbano que promovia a sociabilidade e uma intensa vida cultural moderna, alimentada ainda, pela presença de cinemas, cafés e importantes equipamentos culturais. Essa vivacidade dos arredores da biblioteca é destacada em depoimentos de diversos intelectuais que a frequentaram entre os anos 1950 e 1970: o filósofo e professor Bento Prado Jr. chegou a descrever os bares dos arredores como “sedutores” espaços nos quais se estendiam as discussões iniciadas no interior da biblioteca [26]; e a filósofa e professora Marilena Chauí, por sua vez, destacou a relação afetiva construída em torno da biblioteca e o seu papel de marco urbano e “elemento catalisador” das discussões culturais, na década de 1960:
A Mário era, vamos dizer, a referência de um enorme e admirável mundo novo possível, sobretudo para uma adolescente vinda do interior. […] Então se constituiu pra mim um mapa da cidade em cujo centro estava a Biblioteca Mário de Andrade. Ela era a minha referência cultural, minha referência geográfica, minha referência afetiva [27].
Evidenciamos, portanto, as conexões estabelecidas entre as motivações culturais do período, a tendência arquitetônica empregada no projeto da BMA, as relações urbanas propostas pelo edifício e as sociabilidades construídas ao seu redor ao longo do tempo. O público e o privado se misturam em um térreo aberto para a praça, delineado e projetado conforme as orientações modernas, onde o espaço é permeável e receptivo. Este, por sua vez, também se relaciona com as atividades comerciais, culturais e de serviços das proximidades [28], prolongando a fluidez do pedestre. Apesar das transformações urbanas significativas que a cidade sofreu a partir da década de 1970, a BMA ainda atrai o público a partir de seus espaços acessíveis e denota sua função social e pública estabelecida pela sua interação com os usos adjacentes ao seu edifício.
A configuração urbano-arquitetônica da cidade de São Paulo se modificou paralelamente às mudanças culturais e socioeconômicas do país. A arquitetura, portanto, é parte da memória familiar, social e intelectual dos paulistanos. Neste sentido, entendemos que as ações de preservação e de restauração de edifícios icônicos e históricos – como a Biblioteca Mário de Andrade –, devem considerar atentamente sua trajetória ao longo do tempo, identificando e respeitando os atributos – arquitetônicos, técnico-construtivos, socioculturais, memoriais etc. –, que lhe conferem valores como patrimônio cultural. Além de alimentar nossa memória urbana e social [29], as ações de restauro devem permitir que revisitemos o passado com os olhares do presente, considerando as dinâmicas contemporâneas de uso e de apropriação social, de modo a transmitir nosso legado cultural ao futuro com inteligibilidade e coerência. É nesta perspectiva que se mostra necessário refletir sobre a preservação e o restauro da BMA, buscando contribuir, principalmente, para o aprofundamento dos estudos sobre a dimensão urbana de determinadas arquiteturas durante as ações de tutela e de intervenção.
Com relação à proteção legal do edifício como patrimônio cultural, em 1992 a BMA foi tombada em nível municipal pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), no conjunto das 293 edificações identificadas no perímetro de tombamento do Vale do Anhangabaú [30]. Em 2013, ocorreu o tombamento do edifício em nível estadual, juntamente com a Praça Dom José Gaspar, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) [31]. Em 2017, considerando o tombamento estadual do conjunto composto pela biblioteca e a praça, o CONPRESP decidiu tombar também a Praça Dom José Gaspar, por meio de resolução ex-offício [32]. Cabe ainda destacar a abertura do processo de tombamento em nível federal, no ano de 2015, incluindo o edifício sede da BMA e a coleção de obras raras e especiais. O processo encontra-se, atualmente, em instrução junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) [33].
O edifício da BMA sofreu algumas intervenções entre 1973 e 1991, no entanto, segundo os responsáveis pelo escritório Piratininga Arquitetos, autor das intervenções iniciadas em 2005, foi só nesta data que se planejou uma ação sistêmica, isto é, que se enfrentou concretamente a necessidade de intervenções prediais incisivas, com base em um projeto amplo e sustentável. Os arquitetos buscaram projetar algo que perdurasse e que não fosse apenas uma manutenção predial, mas sim a consolidação de um equipamento público coerente com a história paulistana.
O escritório Piratininga Arquitetos adotou três níveis de intervenção para viabilizar as necessidades contemporâneas de uso: i) circulação pública e paralela à rua da Consolação; ii) plataforma na Praça Dom José Gaspar e; iii) restauro e modernização geral [34]. O primeiro deles, a circulação pública, visou a circulação interna do grande público entre os dois acessos da BMA, na rua são Luís e na rua da Consolação, viabilizado por meio de uma passarela envidraçada construída em anexo ao edifício. Esse nível de intervenção também buscou equilibrar e reajustar as localizações de diferentes usos, além de articular o público em espaços públicos e privados, internos e externos da BMA. O segundo nível de intervenção foi descrito pelo escritório Piratininga como um dos principais pontos de interação do edifício com a cidade: a segurança e acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais. Os arquitetos buscaram criar uma plataforma que não interferisse na condição original e na especificidade de cada ambiente, a exemplo da grande entrada da rua da Consolação, do hall central e da abside para leitura de periódicos, pensada como um espaço de fruição da praça, inclusive com mobiliário próprio projetado pelo arquiteto Jacques Pilon, ainda na década de 1930. Assim, foi proposta uma plataforma integrada ao jardim da Praça Dom José Gaspar que, simultaneamente, criou as rampas de acesso com condições exemplares e normatizadas que viabilizavam o uso do eixo principal do projeto original e também protegeu os acessos diretos à biblioteca. No terceiro nível de intervenção foram levantadas as patologias e os danos do edifício, levando a um restauro das argamassas e dos diferentes materiais de revestimento, como pedras, madeiras e esquadrias metálicas. Os arquitetos planejaram também a modernização das infraestruturas de segurança, instalações elétricas, hidráulicas, telecomunicações, climatização e prevenção e combate a incêndio. O bloco vertical do edifício foi pintado de branco, com o intuito de destacá-lo no tecido urbano, promovendo sua visibilidade [35].
Atendendo aos usos pretendidos, foi projetada no térreo da BMA uma estrutura metálica a fim de comportar os 60.000 volumes da biblioteca circulante. Neste espaço encontra-se também um mobiliário restaurado e selecionado para uso dos leitores, além do novo projeto de iluminação que foi feito especialmente para a leitura. No segundo pavimento, o mobiliário também foi restaurado e selecionado para conviver com o novo espaço. As salas dos pesquisadores foram redesenhadas e adequadas às atuais especificações, oferecendo um espaço confortável para o leitor e seguro para o acervo. Além desses itens descritos pelos próprios arquitetos do escritório Piratininga, podemos notar como se tentou diferenciar os materiais originais e os novos. Os materiais originais do edifício são o concreto e a pedra; já as novas estruturas criadas foram feitas de material metálico [36].
Do exposto, notamos que a biblioteca, já na data de sua construção, representou um marco no centro novo de São Paulo, dotando a cidade não apenas de um grande acervo, mas também de uma proposta de equipamento cultural público que se conecta à vida urbana moderna. O projeto do edifício caracterizou uma inovadora linguagem arquitetônica, criando espaços públicos e se utilizando de novas técnicas de construção, além de propor relações com o entorno da época: o novo centro de São Paulo para além do Vale do Anhangabaú [37].
Nas últimas décadas, contudo, o centro histórico de São Paulo e o entorno da BMA se transformaram significativamente. A antiga vitalidade urbana da região, tão apreciada por intelectuais, como vimos, hoje se apresenta em novos moldes, abrigando outras dinâmicas e outros públicos. Certamente, os frequentadores contemporâneos da biblioteca e de seu espaço envoltório se distinguem sobremaneira da elite paulistana que circulava pelo centro entre as décadas de 1950 a 1970 [38]. É necessário, portanto, adequar não apenas as necessidades de uso do equipamento biblioteca, mas também refletir sobre as possibilidades de integração com o entorno, nesta nova configuração. Trata-se de pensar a preservação arquitetônica, portanto, em sua integração com as políticas urbanas locais, conforme as diretrizes de diversos documentos internacionais voltados à tutela de bens culturais, como a Declaração de Amsterdã (1975) [39], a Carta de Washington (1987), os Princípios de La Valeta para a Salvaguarda e Gestão de Sítios Históricos (2011) [40], entre outros [41].
Diversos projetos de revitalização têm sido propostos para a região central da cidade de São Paulo nos últimos anos, buscando frear processos de degradação física dos imóveis e recuperar o interesse em investimentos no local. Tais objetivos podem ser observados em políticas públicas recentes promovidas pela Prefeitura Municipal de São Paulo, como o Programa Renova Centro e os últimos Planos Diretores, de 2002 e de 2014 [42]. Ambos os planos buscaram promover a retomada do centro histórico, destacando a necessidade de interação do patrimônio histórico e artístico com o ambiente no qual está inserido [43].
Segundo Nadia Somekh, a inserção urbanística é um dos primeiros passos para uma adequada gestão do patrimônio histórico, pois os bens arquitetônicos sempre estarão relacionados a um contexto urbano que deve ser examinado em sua totalidade [44]. Logo, projetos de intervenção que visem a preservação do patrimônio edificado devem considerar critérios relacionados à qualidade de vida dos moradores da região e do entorno, a viabilização econômica dos estabelecimentos comerciais e dos transportes e a relação com áreas vizinhas. O tratamento dos espaços públicos, desse modo, torna-se símbolo de preocupação com o patrimônio e a democracia, procurando garantir os atributos de identidade, diversidade de usos e de frequentadores, legibilidade, conforto para os usuários e integração ao contexto urbano.
Além dessa dinâmica urbana entendida de uma forma geral e que deve ser examinada ao tratarmos qualquer patrimônio arquitetônico, no caso específico da Biblioteca Mário de Andrade há que se considerar a particular relação entre os edifícios e o espaço público envoltório, promovida pela permeabilidade de fluxos e de acessos nos projetos modernos localizados nos arredores do edifício, um atributo que conferiu vitalidade urbana e cultural para toda a região.
As formas de patrimonialização do Biblioteca Mário de Andrade – considerando-a tanto isoladamente como em sua relação com a Praça Dom José Gaspar e o Vale do Anhangabaú –, ao lado das soluções do último projeto de restauro, nos instigam a refletir sobre as questões envolvidas na preservação de um patrimônio arquitetônico particularmente complexo. Tal complexidade se observa, sobretudo, em dois aspectos principais destacados neste artigo: i) as especificidades de sua arquitetura e de sua inserção urbana; e ii) o fato de configurar-se como patrimônio não apenas devido à importância material do edifício, mas, sobretudo, devido à dimensão sociocultural e memorial evidenciada na relação entre a função pública e cultural do edifício e as formas de convivência urbana em seu entorno, ao longo do tempo. A Biblioteca Mário de Andrade, portanto, como arquitetura e como equipamento cultural integrado à cidade, evidencia as complexidades envolvidas no planejamento das ações de preservação e de restauro de um bem edificado, desde a compreensão das premissas da concepção arquitetônica inicial, até a necessidade de se buscar estratégias que conectem o conceito do edifício à atual situação urbana, considerando as transformações ocorridas ao longo do tempo e a interação do objeto histórico com a área envoltória e com a cidade contemporânea.
Agradecimentos
Manifestamos nossos sinceros agradecimentos a Renata Semin e ao escritório Piratininga Arquitetos Associados pelas imagens gentilmente cedidas para este artigo.
Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores de direitos autorais de algumas das fotos incluídas neste artigo. Em caso de eventual omissão, a Revista Restauro procederá aos ajustes necessários o mais breve possível.
Laís Silva Amorim
Arquiteta e urbanista graduada pela Universidade Mackenzie, mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Desenvolve pesquisas relacionadas às políticas de planejamento urbano e de preservação do patrimônio cultural, especialmente no estado de São Paulo, e atua profissionalmente no desenvolvimento de políticas públicas, instrumentos urbanísticos, planejamento e projetos urbanos. E-mail: laisilvamorim@gmail.com
Manoela Rossinetti Rufinoni
Professora do Departamento de História da Arte e do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP). E-mail: rufinoni@unifesp.br
v.2, n.4 (2018)
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