Retrofit: uma perspectiva para a sustentabilidade
| Cristiane Souza Gonçalves |
O termo Retrofit, que tem origem na língua inglesa, surgiu há algumas décadas e vem ganhando cada vez mais espaço no campo dos projetos de arquitetura e engenharia no mundo [1]. Devidamente assimilado no Brasil, já foi transformado em verbo pelo jargão técnico: ‘retrofitar’ está na moda. Mas o que significa? Seria retrofit o mesmo que redesenhar os planos de fachada de uma edificação antiga, dotando-os de um ar mais contemporâneo? Readequar determinada estrutura arquitetônica obsoleta frente às demandas tecnológicas e programáticas atuais? Sem dúvida, estas são ações que integram o rol de procedimentos fundamentais que anunciam a utilização do conceito de retrofit e cujo objetivo principal é o de transformar o enorme acervo edificado disponível nas cidades, com o intuito de renová-lo, proporcionando uma atualização funcional e formal das construções. De um modo geral, fazemos uso desta operação nas muitas vezes em que pretendemos modernizar edificações antigas. Mas isto não esgota o significado do termo retrofit.
O percurso em busca de uma concepção mais ampla e precisa pode ser iniciado se nos perguntarmos o inverso: o que não é retrofit? Demolir uma estrutura primitiva para construir outra coisa em seu lugar, por exemplo, não o é. O termo também não pode ser confundido com “reconstrução” que pressupõe o restabelecimento, com o máximo de exatidão, de um estado anterior conhecido, e que pode incluir materiais diferentes, novos ou antigos.
Entender retrofit como uma simples reforma tampouco é adequado, pois esta pode se restringir aos aspectos decorativos, podendo ou não descartar, parcial ou integralmente, a leitura das estruturas espaciais primitivas. No entanto, talvez a ressalva mais importante caiba à frequente confusão entre as acepções de retrofit e “restauração”.
E o que significa restaurar? Como consideração inicial, podemos situar a restauração como um conjunto de ações realizadas sobre um objeto de reconhecido significado cultural e simbólico, com o objetivo de preservar e revelar valores estéticos e históricos a ele associados. O restauro pressupõe o conhecimento de um arcabouço teórico-conceitual e metodológico cuja aplicação é condição imprescindível para assegurar a efetiva salvaguarda dos valores ali identificados. Para que o documento histórico seja preservado, a restauração deve se basear no respeito às fontes de informações fidedignas e autênticas. A restauração arquitetônica obriga, portanto, os técnicos envolvidos com o projeto de intervenção à adoção de uma metodologia específica, pautada pelo respeito às marcas do tempo e da história. Dito de outro modo, a reinserção da edificação histórica em uma dinâmica contemporânea, a partir do ponto de vista do restauro, não se pauta apenas por um propósito pragmático ou financeiro, mas, sim, pela preservação do bem cultural para as futuras gerações.
O retrofit, por sua vez, não exige o reconhecimento do artefato edificado como bem de interesse histórico, artístico, arquitetônico ou cultural o que, supostamente, poderia inserir a iniciativa em uma esfera de maior liberdade criativa. No entanto, é preciso ponderar que, se inexistem pressupostos vinculados ao rigor histórico e teórico da restauração, para que se efetive a reinserção da edificação em uma nova dimensão de valores – estéticos, técnicos, funcionais, e até mesmo patrimoniais e financeiros – é preciso estar atento às premissas legais e técnicas que deverão conduzir o levantamento detalhado da situação existente, o planejamento das etapas de projeto e execução, assegurando a viabilidade econômica e logística da operação.
Fig.12. Retrofit da Universidade do Distrito Federal (UDF) / Brasília. Antes e durante a execução. (fonte: projeto KRUCHIN arquitetura, fotos: Daniel Ducci)
Alguns entendem o retrofit como uma renovação das fachadas, o que proporciona uma “troca de roupa” dos edifícios sem, contudo, modificá-los, mais profundamente, a partir de seu interior – e o retrofit pode ser isso também. Frequentemente, a tarefa percorre desde as estruturas internas até seu exterior, podendo envolver diversos aspectos da construção, tais como pisos, iluminação, instalações hidráulicas, elétricas etc. e se apresentar associado a uma estratégia de atualização formal e tecnológica em vários níveis com objetivos específicos – como, por exemplo, atingir novos patamares de eficiência energética ou de minimização das demandas no consumo de energia ou água. Nem toda tecnologia é compatível com qualquer tipo de construção, ao contrário, é preciso contratar consultores e técnicos com a devida expertise para reconhecer, dentre os pacotes de soluções disponíveis, a combinação mais eficaz para o que se deseja, dentro da perspectiva de melhoria da qualidade ambiental interna e da sustentabilidade da intervenção a longo prazo.
Por fim, e não menos importante, é preciso lembrar os benefícios do retrofit em escala urbanística. Além de contribuir para a preservação da ambiência tradicional, a permanência de edificações existentes ainda reduz o desperdício, ao maximizar o uso de materiais e infraestrutura existentes. Deste modo, quando reutilizados e readaptados, estes recursos podem gerar uma economia de energia substancial para as cidades. Indo além da mera substituição de materiais desgastados pelo uso ou da renovação de soluções estéticas “datadas”, ou ainda de corresponder a uma oportunidade concreta de aplicação das inúmeras inovações tecnológicas que o mercado apresenta, o retrofit se coloca como imperativo programa para uma vida mais sustentável nas cidades e no planeta.
Notas
[1] Texto elaborado a pedido da editora J. J. Carol como apresentação do livro “Retrofit e Fachadas” (2019).
Cristiane Souza Gonçalves
Arquiteta e urbanista formada pela UFES em 1996. Especialista em Patrimônio Arquitetônico: Teoria e Projeto pela PUC-Campinas (1998), mestre (2004) e doutora (2010) em Teoria e História da Arquitetura pela FAUUSP. Possui experiência acadêmica (ensino e pesquisa) e técnica, com ênfase em projetos de arquitetura e restauro, tendo atuado como arquiteta coordenadora de projetos na KRUCHIN arquitetura, de 1999 a 2015, e como pesquisador doutor junto ao Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural (PEP|IPHAN), em 2010. Participou da coordenação, docência e tutoria dos cursos de Especialização Lato sensu e de Aperfeiçoamento Online Patrimônio Arquitetônico: Preservação e Restauro, da Universidade Cruzeiro do Sul, de 2002 a 2010. Membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios|ICOMOS Brasil desde 2015, foi Diretora do Departamento do Patrimônio Cultural e Natural (DPCN) do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural/RJ e, atualmente, é Professor Visitante na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na área de Tecnologia da Restauração Arquitetônica.
v.3, n.6 (2019)
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