Preservação do patrimônio cultural no interior da Ilha de Santa Catarina

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| Carolina Pinto |

A Ilha de Santa Catarina, conhecida por suas belezas naturais, possui peculiaridades históricas e culturais que se destacam em sua paisagem. A colonização portuguesa, intensificada pela vinda de imigrantes das Ilhas dos Açores, deixou marcas em sua configuração territorial, não somente na antiga Vila de Nossa Senhora do Desterro, hoje centro da cidade, mas também no interior da Ilha de Santa Catarina, especificamente nas localidades do Ribeirão da Ilha, Santo Antônio de Lisboa e Lagoa da Conceição, objetos deste estudo, que ainda conservam características da configuração urbanística implantada originalmente. Durante o século XX, o patrimônio edificado dessas localidades foi bastante ameaçado e, na década de 1980, o Poder Público iniciou uma tentativa de preservação das edificações e conjuntos com valor histórico para o município, determinando que estes núcleos fossem caracterizados como Áreas de Preservação Cultural (APC). As localidades passaram a ser percebidas como parte da paisagem histórica e cultural do município. Os traçados coloniais e a configuração urbanística implantada inicialmente ainda permanecem como elementos fundamentais para a caracterização histórica desses locais e a paisagem formada pelos conjuntos edificados determina a qualidade visual e a ambiência urbana dos sítios históricos.

A colonização portuguesa na Ilha de Santa Catarina

A Ilha de Santa Catarina já era conhecida por sua baía de águas calmas pelos portugueses e espanhóis na época das grandes navegações do século XVI. A localidade abrigou os viajantes que paravam para abastecerem-se de provisões e fazerem reparos em suas embarcações, conforme relatos de Virgílio Várzea em seu livro “Santa Catarina: a ilha”, originalmente escrito em 1900. Segundo Várzea [1] a verdadeira história de Nossa Senhora do Desterro – primeiro nome da cidade de Florianópolis –, começou com uma pequena colônia fundada por Francisco Dias Velho no ano de 1651, bandeirante oriundo de São Paulo, que veio atraído pelas notícias da Ilha, do comércio que aí se fazia e da índole mansa dos indígenas, e resolvera transportar-se para ela com toda a família. Dias Velho iniciou a povoação com a economia baseada na agricultura de subsistência, construiu ranchos e choupanas, erigindo, ao mesmo tempo, uma ermida sob a invocação de Santa Catarina. Após uma invasão de corsários que aportaram em Canasvieiras, Dias Velho teve um trágico fim em 1687 e parte da família voltou a São Paulo, deixando para trás a Ilha e a ermida que haviam construído. Segundo Vaz [2] a localização da capela de Nossa Senhora do Desterro na pequena colina que domina a praça, no mesmo local onde hoje está a catedral de Florianópolis, voltada para o mar, foi o gesto mais duradouro do fundador. A família deixou a ilha deserta, pois os índios domesticados e marinheiros que ali viviam, depois da tragédia com o fundador, foram parte para São Paulo e parte para a colônia de Laguna que era próspera nesta época.

Somente a partir de 1700 observa-se um acréscimo à população da Ilha. Em 1715, os moradores formularam uma petição ao Sargento-mor Manuel Gonçalves de Aguiar, que era o enviado do Governador de São Paulo, solicitando que enviasse pessoas a fim de povoar e defender a Ilha de Santa Catarina. Em 23 de março de 1726, como parte do plano político de ocupação das terras ultramarinas pelo governo português, Nossa Senhora do Desterro tornou-se Vila. A esta altura a pesca e a agricultura de subsistência dos ilhéus se converteram, paulatinamente, em fonte de um regular comércio com as povoações vizinhas (ainda que distantes) e com os navios estrangeiros, em especial franceses, que passavam cada vez com mais frequência, em média de quinze em quinze dias [3].

O acirramento da disputa entre espanhóis e portugueses pela Colônia de Sacramento fez com que a Ilha começasse a ter visibilidade para os portugueses, já que era o último porto em que as frotas dos navios poderiam atracar com segurança. Com o aumento da frequência de navios estrangeiros que paravam para reabastecimento de víveres e água doce e a preocupação com a garantia do controle da terra, a Ilha de Santa Catarina representou um ponto estratégico no domínio das terras do Sul do Brasil pelos portugueses e passou a fazer parte do “perfil marítimo nacional e da rede urbana brasileira” [4]. O local caracterizava-se como posto de apoio da costa brasileira. Pouco a pouco, a Ilha começou a despontar como interesse, pois passou a representar um ponto estratégico militar de importância para a Coroa Portuguesa, justificando a criação da Capitania da Ilha de Santa Catarina (11/08/1738) [5]. O brigadeiro José da Silva Paes foi designado à frente da Capitania e organizou seu sistema de defesa. Foram construídas as Fortalezas de Santa Cruz, na Ilha de Anhatomirim, em 1738 (fig. 1); o Forte de São José da Ponta Grossa, em Jurerê, em 1740 (fig. 2); a Fortaleza de Santo Antônio, na Ilha de Ratones Grande, em 1740; e a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Sul, na Ilha de Araçatuba, em 1740.

Fig. 1. Fortaleza de Santa Cruz, na Ilha de Anhatomirim, construída em 1738 (foto: Joel Pacheco, 2013).

Fig. 2. Forte de São José da Ponta Grossa, construído em 1740 (foto: Joel Pacheco, 2013).

Para aumentar a população da Ilha, Silva Paes implantou uma política de ocupação da área e a partir de 1748 até 1756, levas de imigrantes açorianos foram instalados em locais estratégicos para auxiliar no povoamento e fornecer apoio aos contingentes militares da Ilha de Santa Catarina. Para fazer a distribuição e concessão de sesmarias para as famílias que emigravam, foi estabelecido um processo para dar aos casais a sua porção de terra. Os primeiros casais açorianos fixaram-se dentro do perímetro da Vila de Nossa Senhora do Desterro (hoje centro de Florianópolis), mas, a partir de 1750, outras freguesias foram fundadas: Nossa Senhora da Conceição da Lagoa (atual bairro Lagoa da Conceição) e Nossa Senhora das Necessidades (atual bairro Santo Antônio de Lisboa) (1750); São José da Terra Firme (atual município de São José) e Nossa Senhora do Rosário da Enseada do Brito (atual município de Enseada do brito), no continente (1750); São Miguel da Terra Firme (atual localidade de São Miguel no município de Biguaçú) (1752); Vila Nova de Sant’Ana (atual município de Imbituba) (1752); e Nossa  Senhora da Lapa do Ribeirão (atual bairro Ribeirão da Ilha) (1803).  Esses locais, em sua maioria, estavam localizados junto às baías e também se encontravam próximos às fortalezas.

Para organizar os espaços urbanos onde estava sendo distribuída a população que chegava dos Açores, D. João V já havia estabelecido uma Provisão Régia em 9 de agosto de 1747, onde designou as ordenações necessárias para a colonização portuguesa no Brasil, pela qual deu-se forma e acomodação dos novos Povoadores e Povoações. Determinava a Provisão referida os detalhes para a ocupação territorial:

(…) os sítios mais próprios para fundar lugares em cada um dos quais se estabeleçam pouco mais ou menos sessenta casais dos que forem chegando, e, no contorno de cada lugar e nas terras que ainda não estiverem dadas de sesmaria assinalará um quarto de légua em quadro a cada uma das cabeças do casal do mesmo lugar, na forma declarada no dito edital. Para o assento e logradouro públicos de cada lugar se destinará meia légua em quadro, e as demarcações destas porções de terra se fará por onde melhor o mostrar e permitir a comodidade do terreno não importando que fiquem em quadrados, contando que a quantidade de terra seja a que fica dita. No sítio destinado para o lugar se assinalará um quadrado para a praça de quinhentos palmos de face e em um dos seus lados se porá a Igreja, a rua ou ruas se demarcarão ao cordel com largura ao menos de quarenta palmos, e por elas e nos lados da praça se porão as moradas com boa ordem, deixando umas e outras e para trás espaço suficiente e repartido para quintais atendendo assim ao cômodo presente como a poderem ampliar-se as casas para o futuro [6].

Os primeiros assentamentos da Ilha de Santa Catarina, fora da Vila de Nossa Senhora do Desterro, localizaram-se no Ribeirão da Ilha, Santo Antônio de Lisboa e Lagoa da Conceição. Estes locais já possuíam pequenos núcleos de colonização e foram organizados espacialmente a partir da Provisão Régia de 1747. Os primeiros sítios escolhidos para a localização dos casais e formação das primeiras comunidades no interior da ilha já possuíam, em sua maioria, uma incipiente ocupação prévia, decorrente da colonização vicentista [7].

Áreas de Preservação Cultural

Atualmente, a sociedade florianopolitana já entendeu o valor desses locais que evidenciam seu passado por meio do patrimônio construído e essas primeiras urbanizações estão, de certo modo, protegidas. Esses locais geraram núcleos maiores e hoje são bairros da cidade, regidos por legislações específicas, determinadas pelo Plano Diretor de Urbanismo do Município de Florianópolis, a Lei Complementar n° 482, de 17 de janeiro de 2014, regulamentada pelo Decreto n° 12.925/2014.

A preocupação com o patrimônio municipal construído (edifícios e conjuntos urbanos), passou a ser considerada com a Lei 1.202 de 1974, que dispõe sobre a proteção do patrimônio e institui o instrumento do tombamento, além de criar o Serviço do Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do Município (SEPHAN). A partir de então, foram realizados os tombamentos de várias edificações, em sua maioria no centro da cidade. A partir de 1980, contudo, o SEPHAN foi incorporado ao Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF), iniciando um novo ciclo de preservação, que até então só contemplava grandes monumentos isolados. Nesta nova fase, foi dada prioridade à proteção de conjuntos arquitetônicos para testemunhar a evolução urbana, momento em que a preservação passou a ser considerada um dos elementos integrantes do planejamento urbano. A tutela do acervo cultural de interesse histórico, paisagístico, artístico e arquitetônico, representado pelas edificações, espaços, paisagem e geografia, passou a ser controlada no âmbito do planejamento (incluindo as ações de execução e fiscalização), em especial no que se refere à valorização de áreas históricas, monumentos protegidos e áreas de entorno para a recuperação da memória urbana da cidade. No centro da cidade foram tombados dez conjuntos urbanos em 1986 com o objetivo de manter as referências culturais. As Igrejas de Nossa Senhora da Lapa, no Ribeirão da Ilha, de Nossa Senhora das Necessidades, em Santo Antônio de Lisboa, e de Nossa Senhora da Conceição, na Lagoa da Conceição, bem como a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Desterro, foram tombadas em nível municipal em 1975 e em nível estadual em 1998.

Ribeirão da Ilha, Santo Antônio de Lisboa e Lagoa da Conceição configuram-se como Áreas Especiais – Área de Preservação Cultural (APC) –, e estão sujeitas a legislações específicas destinadas à preservação de sítios de interesse histórico, antropológico e arqueológico. Apesar de as áreas estarem demarcadas em mapas, a lei ainda está em desenvolvimento, necessitando maior detalhamento e regulamentação. A lei determina que as intervenções em edificações ou terrenos localizados nas APC dependem da anuência do SEPHAN.

Existe, ainda, uma manifestação em forma de dois Decretos, tombando as áreas do Ribeirão da Ilha e de Santo Antônio de Lisboa como Patrimônio Histórico, Artístico e Natural do Município, os Conjuntos Históricos e Paisagísticos, classificando os imóveis inseridos na poligonal das APC, mas este documento encontra-se em trâmites legais e ainda não foi sancionado pelas autoridades.

Ribeirão da Ilha

O Ribeirão da Ilha possui o maior conjunto de edificações preservadas do período colonial na Ilha de Santa Catarina. O assentamento do núcleo inicial com praça, igreja, cemitério e arruamento foi adaptado ao sítio escolhido a partir das indicações da citada Provisão Régia. O conjunto localiza-se num aclive em frente a uma baía de águas calmas, nas proximidades de um porto natural que funcionou até meados do século XX, onde os antigos colonizadores faziam seu comércio e comunicavam-se com outros núcleos.

O início do povoado aconteceu a partir de 1514, quando um grupo de marinheiros, náufragos de um dos barcos de Juan Dias de Solís, chegou à baía. Em 1526, também após naufrágio, Sebastião Cabotto, navegador veneziano contratado pela Corte da Espanha, aportou no Ribeirão e ali permaneceu até o ano seguinte. Cabotto mandou fazer acampamento, levantando uma igreja, casa de pólvora, vários paióis e um pequeno estaleiro para construção de nova embarcação, iniciando aí o povoamento do local. Também a Cabotto é atribuída a denominação da Ilha, pois consagrou-a a Santa Catarina de Alexandria [8].

Em 1760, após o estabelecimento dos casais açorianos, Manoel de Valgas Rodrigues mandou construir uma capela para onde levou a imagem de Nossa Senhora da Lapa. Mas, devido à distância e às dificuldades de comunicação com a matriz em Nossa Senhora do Desterro, a assistência espiritual era recebida somente de tempos em tempos. “A união entre a Igreja e o Estado fortalecia as criações arquitetônicas religiosas, uma vez que a igreja passa a ter um grande papel social e político”[9]. A Igreja de Nossa Senhora da Lapa (inaugurada em 1806) foi construída posteriormente e em local diferente da antiga capela. Ela marca o local onde se pode observar a urbanização promovida pela aplicação da Provisão Régia, localizando-se em frente à Praça Hermínio Silva, em local elevado e tendo o relevo e a vegetação como pano de fundo (fig. 3). Atualmente a Igreja encontra-se tombada em nível municipal pelo Decreto n° 1314/75 e a nível estadual pelo Decreto n° 2998 de 25 de junho de 1998. A Freguesia do Ribeirão teve início oficialmente em julho de 1809 e, posteriormente, foi elevada à categoria de Vila, em 1840.

Fig. 3. Igreja de Nossa Senhora da Lapa, fundada em 1806 (foto: Carolina Pinto, 2014).

Contrastando com o padrão da Igreja, as habitações possuem traços bem mais simples, em sua maioria as edificações possuem o partido arquitetônico colonial, como a regularidade nas aberturas e mínimos elementos decorativos. A figura 4 apresenta exemplos de edificações encontradas na Freguesia; muitas destas edificações têm data provável de construção do início do século XIX.

Fig. 4. Edificações no Ribeirão da Ilha (foto: Joel Pacheco, 2013).

Santo Antônio de Lisboa

O local recebeu seus primeiros colonizadores a partir de 1698, quando o Padre Matheus de Leão teria se localizado com mais 20 casais para aumentar a população da Ilha, recebendo sesmarias de duas léguas de terra. Posteriormente, em 1714, Manoel Manso de Avelar, então Sargento-mor da Ilha de Santa Catarina, estabeleceu-se nas proximidades com a família (na localidade de Sambaqui, pouco mais em direção ao norte na mesma baía), de onde dirigia os negócios da Ilha. A partir daí a região começou a florescer, transformando-se em freguesia, em 1750. A Igreja, denominada Nossa Senhora das Necessidades, foi consagrada em homenagem à devoção a uma santa portuguesa, por solicitação de Clara Manso de Avelar, filha de Manoel Manso de Avelar. Esta Igreja encontra-se tombada em nível municipal pelo Decreto n° 1314/75 e em nível estadual pelo Decreto n° 2998/98, como Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico.

Hoje o bairro destaca-se como produtor de ostras, como destino turístico pelo seu Patrimônio Cultural e por sua Rota Gastronômica do Sol Poente, incluindo inúmeros restaurantes, atraindo turistas e incrementando a economia.

Santo Antônio perdeu muitas de suas edificações antigas, principalmente a partir da construção da rodovia SC-401 na década de 1970, que liga o centro ao norte da Ilha, quando a localidade recebeu maior visibilidade por parte dos novos moradores que passavam a incrementar a população da Ilha. A baía de águas calmas e a beleza do pôr do sol, que já havia atraído os primeiros colonizadores, juntamente com a proximidade do centro da cidade, transformou o bairro em um local bastante atraente para instalação da população com maior poder aquisitivo. Os antigos moradores, que tinham a economia baseada na pesca, viram a possibilidade de melhoria em sua qualidade de vida, mas, ao perceberem que haviam perdido seu contato com as antigas tradições, não puderam mais voltar ao local de origem, pois agora já não podiam pagar pelos terrenos do local. Neste momento que a necessidade de modernização das edificações fica evidente, muitas delas acabaram sendo substituídas por edificações modernas, mesmo sujeitando-se às novas regras da legislação com maiores afastamentos dentro dos lotes, o que pode ter colaborado para a alteração do parcelamento urbano.

A Igreja de Nossa Senhora das Necessidades (fig. 5) localizada em terreno elevado está implantada em local de destaque e tem o cemitério localizado junto às fachadas posterior nordeste e lateral sudeste. A figura 6 apresenta um conjunto de edificações encontradas em Santo Antônio de Lisboa. A volumetria das edificações acrescidas ao conjunto urbano e as modificações estéticas posteriores ao período colonial conseguiram manter a uniformidade volumétrica do conjunto. A largura das vias, concebidas no período em que era pequena a circulação de veículos, aliada à proximidade das edificações, traz a escala humana até o observador, proporcionado sensações positivas quanto à percepção do núcleo histórico. A figura 7 apresenta uma vista da baía de Santo Antônio de Lisboa, que possui um dos mais belos visuais da Ilha de Santa Catarina.

Fig. 5. Igreja de Nossa Senhora das Necessidades (foto: Carolina Pinto, 2013).

Fig. 6. Conjunto de edificações em Santo Antônio de Lisboa (foto: Carolina Pinto, 2013).

Fig. 7. Pôr do sol na baía de Santo Antônio de Lisboa (foto: Carolina Pinto, 2013).

Lagoa da Conceição

A  Freguesia de Nossa Senhora da Conceição foi criada oficialmente por Alvará Régio em 7 de junho de 1750. A Igreja, que se encontra tombada em nível municipal pelo Decreto n° 1314/75 e em nível estadual pelo Decreto n° 2998/98, como Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico, teve como seu primeiro vigário o Padre Manoel Cabral de Bittencourt que veio acompanhado de casais açorianos colonizadores. A ocupação não foi a primeira a se instalar nestas terras, pois, nas proximidades, encontram-se vestígios de ocupação pré-histórica, como sambaquis, pedras com sulcos, amoladores e afiadores, além de machados semipolidos e cerâmica [10].

A economia durante a ocupação inicial, após a chegada dos imigrantes açorianos, estava concentrada nos engenhos de mandioca, alambiques, fábricas de açúcar, curtumes, além de grande produção de pescados que supriam as necessidades da freguesia e eram comercializados com outras localidades mais próximas, inclusive Desterro. Esta Freguesia destacava-se das demais pela existência da indústria doméstica. A fabricação de tecidos, toalhas e riscados provavelmente servia toda a cidade.

A Lagoa da Conceição atualmente é um dos principais pontos turísticos de Florianópolis e, apesar da caracterização de bairro histórico, o número de edificações que ainda possuem elementos coloniais é bastante reduzido. A posse legal das terras da Lagoa da Conceição passa hoje por conscientização do nível de ocupação. O respeito pelas construções com valor histórico, como a Igreja e seu entorno é um trabalho complexo, que tem a população como aliada na construção e manutenção de símbolos de identidade da cidade.

A localização da Igreja sobre uma colina dificultou a organização das edificações em seu entorno. Poucas são as construções com valor histórico ou estético que restam no núcleo inicial da Lagoa da Conceição. A Igreja de Nossa Senhora da Conceição (fig. 8) teve sua planta encaminhada a Portugal, em ofício de 22 de abril de 1751, assinado pelo Governador Manuel Escudeiro Ferreira de Souza. É desconhecida a data do início e fim da construção da Igreja, mas sabe-se que, certamente, por volta de 1780, a Igreja foi concluída. Segundo Piazza [11], a planta da Igreja foi desenhada pelo cabo-de-esquadra Antônio Gonçalves Loureiro. Ao seu redor encontram-se pequenas residências vizinhas que ainda guardam as características do período de sua construção, muitas delas adaptadas a construções mais recentes.

Fig. 8. Igreja de Nossa Senhora da Conceição (foto: Carolina Pinto, 2015).

O núcleo mais significativo para a arquitetura colonial é composto pela Igreja, o Teatro do Divino Espírito Santo (fig. 9), o Cruzeiro, a antiga casa do Vigário, a ladeira de pedras executada pelos escravos que dá acesso ao largo da Igreja e o sobrado que funcionava como delegacia (fig. 10).

Fig. 9. Teatro do Divino Espírito Santo (foto: Carolina Pinto, 2015).

Fig. 10. Ladeira de pedras e casarão (foto: Carolina Pinto, 2015).

Conclusão

As formações urbanas dos núcleos iniciais do Ribeirão da Ilha, Santo Antônio de Lisboa e Lagoa da Conceição consolidam as características da ocupação da Coroa Portuguesa, que tinha o objetivo de garantir a posse e a exploração dos territórios conquistados durante a fase colonial.

Os núcleos estudados possuem características significativas para que se configurem como Áreas de Preservação Cultural (APC) dentro da Ilha de Santa Catarina. Essas APC ainda guardam as características básicas do plano urbano determinado pela Provisão Régia de 1747, como a configuração colonial das quadras próximas às igrejas e as edificações localizadas de forma linear nos caminhos que faziam a ligação com outros núcleos do passado. A legislação aplicada anteriormente nessas áreas, o Plano Diretor dos Balneários (Lei 2193/85), permitiu a descaracterização de diversas edificações, devido à falta de fiscalização e conscientização dos proprietários, o que ocasionou a perda de grandes possibilidades de registro das edificações presentes nos núcleos, principalmente na Lagoa da Conceição e em Santo Antônio de Lisboa, onde os conjuntos urbanos encontram-se mais dispersos.

O traçado urbano em todos os núcleos iniciais mostra-se compatível com as dimensões de lotes coloniais de pequena fachada e grande profundidade e sua disposição apresenta-se conforme o planejamento em vigor no século XVIII. As ruas estreitas com as edificações antigas dispostas no alinhamento frontal do terreno, bem como a volumetria em escala humana colaboram para evidenciar as características históricas e a identidade dos locais. As edificações construídas posteriormente ou as transformadas, ainda que com características de outros momentos históricos, mantêm esta volumetria e não interferem na paisagem, na maioria dos casos. As edificações que possuem elementos de valor histórico, em todos os sítios, influenciam as construções posteriores e, apesar de, na maioria dos casos, apresentarem-se em menor número, possuem forte caráter colonial, trazendo valor histórico para as localidades.

Na maioria das edificações mais antigas, os usos originais foram modificados, pois a vocação turística tem atraído restaurantes, comércios variados, casas de artesanato e associações comunitárias. Essa adaptação aos novos usos pode colaborar com a preservação dessas edificações enquanto registro e manutenção da memória. No Ribeirão da Ilha, que guarda o maior acervo de edificações e conjuntos urbanos preservados, observa-se que o uso residencial é predominante e isto se justifica pois o Ribeirão foi uma comunidade sempre muito distante do centro da cidade e com dificuldades de acesso, o que colaborou para a conservação das edificações. A paisagem do Ribeirão da Ilha merece uma legislação mais enfática, na medida em que se observa, pontualmente, algumas tentativas de imitação da arquitetura luso-brasileira através de fachadas cenográficas, o que acaba por confundir o  visitante. Em Santo Antônio de Lisboa, a maioria das edificações preservadas possui atualmente uso comercial, normalmente voltado à gastronomia. Percebe-se que o caráter histórico dos núcleos valoriza o comércio local e atrai visitantes. A Prefeitura Municipal incentiva a economia destes locais com projetos como a Rota Gastronômica do Sol Poente, que inclui Santo Antônio de Lisboa, revelando para o turista um roteiro além do tradicional movimento às praias da Ilha de Santa Catarina. A Lagoa da Conceição, por sua vez, é o sítio que possui maiores ameaças à sua paisagem, pois existem diversas edificações, que apesar de terem sido em parte preservadas, fazem parte de edificações mais modernas, sendo muitas vezes descaracterizadas.

Em todos os sítios ainda existe um fator primordial para a preservação do local: os costumes e tradições dos antigos colonizadores portugueses. A pesca, o artesanato em cerâmica, a agricultura doméstica, a fabricação de aguardente e de farinha de mandioca, os festejos do Divino, Terno de Reis e Boi-de-mamão, são costumes que permanecem vivos, passados de geração em geração para que não se percam no tempo, garantindo a conexão com o passado. Preservar os sinais da ocupação humana ao lado de seus costumes e tradições é fator imprescindível para que possamos compreender e valorizar a forma da cidade que encontramos atualmente.

As iniciativas de preservação das edificações antigas são bastante recentes na Ilha de Santa Catarina, somente a partir do final do século XX pode-se observar a preocupação com o resgate e manutenção do patrimônio natural, material e imaterial. Programas de modernização das cidades, promovidos, sobretudo, a partir da década de 1950 no Brasil, colaboraram para que o patrimônio ficasse em segundo plano, já que a intenção de renovação era a política urbana predominante na época. O turismo pode ser um fator de relevância na preservação das edificações, pois a população local passa a valorizar seu patrimônio e seus costumes antigos, mas deve-se ficar atento à especulação imobiliária como efeito negativo. O retorno da economia para os moradores incentiva as comunidades a manter e a conservar seu patrimônio, conscientizando-os de que o progresso pode ser obtido através da preservação. O referencial cultural, portanto, pode gerar um desenvolvimento econômico para as comunidades e estas percebem este aspecto e procuram mantê-lo. Ainda há um longo trabalho para que os núcleos iniciais da Ilha de Santa Catarina mantenham-se preservados, devido à pressão dos interesses econômicos e às dificuldades e limitações impostas pelas legislações urbanística e de preservação, mas o caminho está trilhado e deve ser mantido.


[1] VÁRZEA, Virgílio. Santa Catarina: a Ilha. Florianópolis: Ed. Lunardelli, 1985.

[2] VAZ, Nelson Popini. O centro histórico de Florianópolis: espaço público do ritual. Florianópolis: FCC Ed./Ed. UFSC, 1991.

[3] PAULI, Evaldo. A fundação de Florianópolis. Florianópolis: UDESC, 1973.

[4] MARX, Murillo. Cidade brasileira. São Paulo: Melhoramentos: EDUSP, 1980.

[5] VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: Memória urbana. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 2010.

[6] CABRAL, Oswaldo R. Os Açorianos: contribuição ao estudo do povoamento e evolução econômica e social de Santa Catarina. In: FONTES, Henrique da S. (Org.). Congresso de História Catarinense, 1., Anais… v.2. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950.

[7] REIS, Almir F. Ilha de Santa Catarina: permanências e transformações. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012.

[8] PEREIRA Nereu do Vale; PEREIRA, Francisco do Vale; SILVA NETO, Waldemar Joaquim. Ribeirão da Ilha Vida e Retratos: um distrito em destaque. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 1991.

[9] SOUZA, Sara Regina Silveira de. A presença portuguesa na Ilha de Santa Catarina – séc XVIII e XIX. Dissertação do Curso de Pós-graduação em História – UFSC, 1980.

[10] VÁRZEA, Virgílio. Santa Catarina: a Ilha. Florianópolis: Ed. Lunardelli, 1985.

[11] PIAZZA, Walter F. A Igreja em Santa Catarina: notas para sua história. Florianópolis: Ed. do Governo do Estado de Santa Catarina, 1977.


Carolina Pinto

Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (PósARQ-UFSC). Sua pesquisa intitulada “Paisagem e Morfologia na Ilha de Santa Catarina: estudo dos núcleos iniciais do Ribeirão da Ilha, Santo Antônio de Lisboa e Lagoa da Conceição” contou com apoio da CAPES e foi concluída em 2015. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 1989). Atua como docente nos Cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Interiores da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).


logo_rr_pp      EDIÇÃO n.3 2018       

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