Museu Vivo do Nordeste: dez anos como um relicário de memórias nordestinas

4674 Views

| Leandro Santos Costa e Bruna de Oliveira Almeida |

Traga os olhos pra passear
num museu caririzeiro
vá de volta pro passado
recordando o dia inteiro
das raízes culturais
do nordeste brasileiro!

(Adonhiran Ribeiro dos Santos)

Situado no histórico bairro de Bodocongó, na cidade de Campina Grande / PB, o Museu Vivo do Nordeste (MVNe) tem como objetivo preservar o patrimônio a partir de objetos pertencentes ao universo nordestino, especificamente do interior da Paraíba. O MVNe surgiu como um projeto inicialmente pessoal do professor e historiador Adonhiran Ribeiro dos Santos, que o sediou em sua própria casa. Posteriormente, a partir de 2009, o MVNe vinculou-se às atividades de extensão da Universidade Estadual da Paraíba. Em 2019, o museu completa 10 anos de histórias, contando com atuações regionais e nacionais, além de mais de 600 peças catalogadas, provenientes dos séculos XVIII, XIX e início do século XX, incluindo peças em funcionamento e que podem ser experienciadas pelos visitantes ou cursistas [1].

O museu tem a função de representar a moradia de um homem do interior, onde as casas tinham apenas um vão, por isso, a entrada do museu começa pela cozinha. O fogão, na maioria das vezes funcionando e exalando o cheiro da comida preparada na hora, confere ao Museu um caráter vivo. Depois de apresentar a sala – composta pela mesa, oratório, petisqueiro dentre outros objetos –, o terceiro espaço apresentado vincula-se à técnica, com as máquinas e utensílios necessários à vida cotidiana. Temos, ainda, o terreiro. Um anexo vinculado ao museu e que abriga um bar cenográfico com uma mescla de estilos em sua composição estética: do alternativo ao artesanal. E, por último, mas não menos importante, temos o “beco”, construído para representar a vegetação típica do nordeste. A partir do beco, podemos entrar ou sair do museu.

Fig. 1. Professor Adonhiran (Adon) (fonte: Portal do G1).

Ao estimular, dessa maneira, a capacidade de sentir e de se emocionar – por meio das diversas manifestações artísticas expostas, tais como livros, discos, peças, pinturas e poemas, provindas de cada visitante ou do acervo que a instituição disponibiliza –, o museu aguça a sensibilidade e a curiosidade por “vasculhar” para além do visível. Desse modo, o MVNe instiga a memória daquilo que talvez não tenhamos vivido, porém, do que nos lembramos bem. Ao contrário de outras instituições de memória, nas quais o acervo não é palpável ou consultável, no MVNe o acervo é dinâmico, pois sugere movimento na relação entre a permanência de tradições, de saberes e fazeres, e a sua continuidade reinventada no tempo presente, no cotidiano da região. Dessa forma, não apenas juntar objetos, mas dar-lhes vida, é um de seus focos.

Em diversas reportagens sobre o MVNe [2], pudemos captar, a partir dos relatos de seu fundador, a dimensão simbólica da casa que se tornou o museu vivo das memórias do semiárido nordestino [3]. Foram vários os trabalhos realizados nos dez anos de existência do Museu Casa, atendendo a públicos distintos sem perder sua característica.

Fig.2. Logomarca do Museu (fonte: Museu Vivo do Nordeste)

Fig. 3. Sala do Museu que conta com peças dos séculos XVIII, XIX e XX (fonte: Portal do G1)

O MVNe não é imóvel, não está cristalizado. A partir dessa perspectiva, o museu propõe uma interação criadora entre o seu espaço e as artes, sejam elas plásticas, sonoras, teatrais, culinárias, cinematográficas etc. Deste modo, as ações do MVNe têm buscado abordar a arte em suas mais variadas linguagens, tomando-a como constituidora de múltiplas identidades, porém relacionando-a, sempre, com a proposta central da Casa Museu, isto é, a cultura popular nordestina. Com base no resultado das ações propostas pelo museu, como cursos e atividades culturais, acreditamos no potencial da arte enquanto conhecimento a ser construído e linguagem a ser experimentada e fruída, levando nosso visitante a construir, experimentar, expor e refletir.

Desse modo, na experiência do MVNe, não lidamos com a ideia de museu como “guardador” de obras de arte e sim como espaço que permite as mais variadas manifestações artísticas, evidenciando a relação passado-presente e os discursos acerca do Nordeste e de sua cultura do interior, dando voz e vez ao povo nordestino.

Fig. 4. Evento cultural de encerramento do Curso de Xilogravura e Cordel, com a apresentação do Grupo de Música Regional Maracagrande-PB, Mestre Lua-Pe e Grupo Tirinete-PB (fonte: Museu vivo do Nordeste)

Conduzindo nosso visitante a experimentar e a refletir, consideramos a arte como área de conhecimento com características únicas e imprescindíveis ao desenvolvimento do ser humano. Daí a importância de repensar os museus como espaços para a atividade estética e criadora, nos quais haja uma integração entre as peças, a produção artística e as memórias. Segundo Barbosa:

Por meio da Arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao indivíduo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada. [4]

Desse modo, o Museu Vivo do Nordeste busca transformar o olhar da comunidade sobre a cultura regional, construindo e desconstruindo discursos acerca de uma rica história vivida em nossa região, no intuito de estimular a sensibilidade e a cognição do visitante. Acreditamos que, ao “provocar” o público, abrimos possibilidades para a construção do respeito por uma história de raízes que, de uma forma ou de outra, também é nossa própria história.

Não se trata de visitar o passado e sim de acender estudos sobre o tempo pretérito em relação com o que é vivido no presente. Conhecer o passado de modo crítico significa, antes de tudo, viver o tempo presente como mudança. Desse modo, por meio das relações entre os objetos atuais e os objetos de outros tempos, o museu ganha substância educativa, pois desvenda relações entre o que passou, o que está passando e o que virá. É o que o MVNe procurou nos dez últimos anos, produzir memórias de um homem do interior atreladas às nossas vivências contemporâneas.

Assim, registramos e damos voz ao legado de homens que não lideraram grandes batalhas, que não se tornaram grandes líderes políticos, mas que fizeram de suas vidas obras e marcas de resistência, produção de saberes, lições. Que atenderam às demandas espaciais e temporais de acordo com o que tinham e sabiam; realidades de grandes e simples heróis que podem nos ensinar a tecer o nosso cotidiano, que podem nos dar respostas para o nosso presente permeado de incertezas.

Os sujeitos devem perceber o museu como uma fonte que carrega consigo símbolos, marcas, auras, signos, ou melhor, não só contemplar, mas captar a profundidade deste espaço. Pois é um lugar que proporciona, por sua vez, a compreensão das inter-relações tanto naturais, como sociais, econômicas e culturais envolvidas. É o que afirma Waldisa Rússio Guarnieri ao definir a museologia como:

Ciência do fato museal ou museológico. O fato museológico é a relação profunda entre o homem, sujeito que conhece, e o objeto, parte de uma realidade da qual o homem também participa, e sobre a qual tem o poder de agir. O fato museológico realiza-se no cenário institucionalizado do museu. [5]

Por essa via, não se pode tratar as peças do museu apenas como artefatos, pois são bases de informações, documentos e fontes de pesquisas para o historiador. Portanto, o museu gera e estimula reflexões acerca dos signos e significados dos objetos que têm laços simbólicos, pois se não pensar o presente vivido, não terá bases para construir saberes do passado. Para Chagas, o olhar que questiona, interroga e busca, torna os objetos bens culturais [6].

Para perceber os fatos históricos analiticamente, deve-se entender o momento atual, o agora como um devir, isto é, uma mudança contínua, onde tudo coagula e solve em seus processos. O museu consegue proporcionar essa micro relação histórica, peças e memórias, passado e presente entrelaçado como uma simbiose. Como se percebe, também não é lugar de nostalgia, mas onde mantemos viva a história, como no mito grego de Atlas, cujo esforço ao carregar o mundo nas costas possibilita o conhecimento dos instantes que se escrevem e dos momentos (de séculos ou até milênios) que se passaram. A história cultiva, portanto, na figura do museu, não só a memória, mas as emoções vividas.

Fig. 5. Espaço de convivência ‘Meu Cariri’, com a prensa manual usada no brejo e várias espécies do Semiárido Nordestino (fonte: Portal do G1).

A partir dessa perspectiva, buscamos trabalhar as relações dos visitantes com os objetos, bem como a relação dos artistas com o espaço. O agendamento prévio das visitas permite que seja definida a quantidade de visitantes que poderão comparecer numa mesma hora. Buscamos, então, ressaltar a história de algumas peças para que o nosso visitante possa imergir, a partir da narrativa sobre determinado objeto, em outro tempo e espaço, porém conectado com o presente. Seguindo a perspectiva teórica de Maurice Halbwachs podemos entender que a memória aparentemente mais particular remete a um grupo [7]. O indivíduo carrega em si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições. É no contexto dessas relações que construímos as nossas lembranças.

Fig. 6. Fogão do século XIX em funcionamento. Neste fogão são feitas comidas típicas para oferecer aos visitantes durante eventos no museu (fonte: Museu Vivo do Nordeste)

Dessa forma, não apenas os objetos, mas também a narrativa acerca desses incitam no visitante a rememoração de algo que já fora vivido ou contado por outro a partir da vivência coletiva, por essa razão: Museu Vivo. Os museus tornam-se, portanto verdadeiros relicários de memórias vívidas, expondo objetos que carregam em si as lembranças e a história; que se moldam e se adaptam a cada olhar, a cada história individual que carrega em si tantas outras histórias.

Fig. 7. Trabalhos desenvolvidos no curso de Xilogravura, realizado pelo xilogravurista Arnilson Montenegro (fonte: Museu Vivo do Nordeste)

A função de um museu e do Museu Vivo do Nordeste, particularmente, não é apenas juntar objetos, como por muitos ainda é visto e julgado, mas criar afetividades relacionadas a esses objetos e suscitar nas pessoas relações intrínsecas que apenas os seus lugares sociais poderiam desenvolver com relação aos mesmos. Afinal, cada “objeto” ultrapassa essa categoria quando a ele atribuímos nossas memórias, nossos afetos e nossos esquecimentos, tornando-se “paisagens móveis” de um passado intrinsecamente relacionado ao presente, ao instante de quem lembra. Ora! O ato de lembrar se dá no agora, parte de nossas inquietações atuais que já não são as mesmas de ontem, portanto, esse belo movimento onde o presente caça o passado para atenuar-lhe uma dor, ou trazer-lhe pessoas, momentos, cheiros ou cores ressignificadas de um ontem que jamais poderá voltar, é um movimento feito a partir de um signo exterior e que, sobretudo, recoloca à história o seu objeto.

Portanto, percebemos que o Museu Vivo do Nordeste, em seus dez anos, vem nos mostrando que precisamos gerar consciência para guardar e preservar o patrimônio cultural e memorial de nossa sociedade. O museu não é só um lugar para guardar coisas velhas, mas um espaço para construir a história para além dos signos semânticos e existenciais, no tocante à relação do sujeito com o objeto exposto à sua frente e capaz de “funcionar”. Museu Vivo não só na memória, mas em sua tentativa de “reviver” suas peças, de interagir com o corpo, com a mente e todas as suas estruturas psíquicas.


Notas

[1] Atualmente, o MVNe está integrado ao mapa do IBRAM e à Semana Nacional de Museus, desde 2013, oferecendo várias atividades para a comunidade, a exemplo do curso “Estética do Cangaço”, realizado pelo Mestre artesão Biagio Grisi. Ressaltamos que o Museu Vivo é um projeto que se tornou bem sucedido devido à dedicação de seu fundador Adonhiram e de todos os bolsistas, colaboradores e voluntários ao longo de seus dez anos de existência.

[2] Entre tantas reportagens sobre o MVNe, escolhemos algumas que demonstram objetivamente cada parte do Museu. São entrevistas e reportagens feitas e/ou cedidas por programas jornalísticos ou, ainda, desenvolvidas por estudantes, como por exemplo, do curso de Jornalismo da UEPB. Dessa forma, percebemos o diálogo com a comunidade acadêmica e as comunidades em geral: Estudantes de Jornalismo (UEPB) https://www.youtube.com/watch?v=F6693I3xmPU; Programa Diversidade da TV Itararé filial da TV Cultura, https://www.youtube.com/watch?v=ZWnmbDaSVKs; Reportagem cedida à UEPB 5.0 https://www.youtube.com/watch?v=yJZScLKVsqI; Programa Pernambuco Cultural com Mestre Lua, acesso https://www.youtube.com/watch?v=huCfS215L7Q Acessos em: 19/04/2019.

[3] Entrevista cedida ao G1, disponível em http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/08/professor-de-historia-tem-museu-do-nordeste-dentro-de-casa-na-paraiba.html; Entrevista para o Blog Jornalístico TOK de HISTÓRIA, disponível em https://tokdehistoria.com.br/2016/08/08/professor-de-historia-tem-museu-do-nordeste-dentro-de-casa-na-paraiba/ Acessos em 19 de Abril de 2019. A pesquisa de Francinilda Rufino também merece ser citada como uma importante fonte de pesquisa obre o MVNe: RUFINO, Francinilda. Museu Vivo do Nordeste: tecendo fios, acendendo o fogão, preparando a farinha e cozinhando o ‘pão’.  Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de História da UEPB. Disponível em http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/123456789/3211/1/PDF%20%20Francinilda%20Rufino%20da%20Souza.pdf  Acesso em: 19/04/2019.

[4] BARBOSA, A. As mutações do conceito e da prática. In BARBOSA, A. (org.). Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte.  2ª ed. São Paulo: Cortez, 2003, p.18.

[5] GUARNIERI, W. Museologia e Identidade. In: Cadernos Museológicos, nº 1&2, 1990, p.42.

[6] CHAGAS, Mario. Museu: coisa velha, coisa antiga. Rio de Janeiro, UNIRIO, 1987, p. 20.

[7] HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. – São Paulo: Vertice, 1990.


Referências Bibliográficas

BARBOSA, A. As mutações do conceito e da prática. In BARBOSA, A. (org.). Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte.  2ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.

CHAGAS, Mario. Museu: coisa velha, coisa antiga. Rio de Janeiro, UNIRIO, 1987, p. 20.

GUARNIERI, W. Museologia e Identidade. In: Cadernos Museológicos, nº 1&2, 1990.

HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. – São Paulo: Vertice, 1990.

LIRA, A. Professor de história tem museu do Nordeste dentro de casa, na Paraíba. In: G1, Reportagem, 2016. Disponível em http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/08/professor-de-historia-tem-museu-do-nordeste-dentro-de-casa-na-paraiba.html Acesso em: 19/04/2019.

MEDEIROS, R. Professor de História tem Museu do Nordeste Dentro de Casa, na Paraíba. In: TOK de HISTÓRIA, reportagem, 2016. Disponível em https://tokdehistoria.com.br/2016/08/08/professor-de-historia-tem-museu-do-nordeste-dentro-de-casa-na-paraiba/ Acesso em: 19/04/2019.

MUSEU VIVO DO NORDESTE. Fotografias e Outras Informações Disponível em https://museuvivodonordeste.wordpress.com/ Acesso em: 19/04/2019.


Leandro Santos Costa, formado em Filosofia (Licenciatura Plena) pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pesquisador, artista e escritor. Trabalhou três anos como pesquisador do MVNe. Foca suas pesquisas no panorama dos fenômenos subjetivos voltados para a Estética e a Arte, como também, na Fenomenologia, Hermenêutica, Ética, Educação, Museologia (Patrimônio e Memória), Ciências Humanas e Sociais, Ontologia e Epistemologia. É pós-graduando Lato Sensu em “Problemas Fenomenológicos e Hermenêutica”, com a pesquisa: Esboço fenomenológico hermenêutico da subjetividade para uma sociedade em crise.  e-mail para contato: lleo-sc@hotmail.com

Bruna de Oliveira Almeida é acadêmica de Direito da Faculdade Cenecista da Ilha do Governador (FACIG), e-mail para contato: almeidabruna@live.com


logo_rr_pp   v.3, n.6 (2019)   

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional

image_pdfgerar PDFimage_printimprimir