Do monumento ao fragmento urbano: um enredo entre memória e criação

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| Eneida de Almeida |

Desde tempos muito remotos os homens lidaram livremente com os artefatos do passado, com o intuito de adaptá-los às exigências do momento presente, admitindo para tanto acréscimos ou demolições, sem estabelecer severas restrições às transformações [1]. As drásticas mudanças que se seguiram à revolução industrial, contudo, motivaram o reconhecimento (e preservação) dos bens culturais, em um processo de ampliação gradativa da abordagem desde o monumento histórico, como elemento isolado, até abranger o conjunto urbano, o seu traçado e a sua morfologia [2].  Esse processo conduzido por vias oficiais e institucionais determinou a criação de inventários de bens tombados, sobre os quais vigorava (e vigora ainda hoje) uma legislação específica de tutela patrimonial. Entretanto, interessa aqui ampliar a discussão acerca da noção de patrimônio, de modo a extrapolar a ideia do patrimônio consagrado e, assim, considerar situações menos cristalizadas que propiciem especular acerca das práticas voltadas às preexistências de interesse documental inseridas no meio urbano, considerando uma situação fronteiriça entre o projeto arquitetônico e o restauro stricto sensu.

Este texto atenta à cidade como um organismo constituído por objetos construídos socialmente em um processo de contínua transformação, segundo práticas que não apenas lhe dão forma e função – configurando-os como fatos materiais situados no tempo e no espaço – mas que também lhe conferem sentido, instituindo-os como representação simbólica – como imaginário urbano –, que, por sua vez, se reinsere nesse ciclo dinâmico, revigorando a própria produção da cidade como artefato [3].

Compreender esse movimento espiral da cidade no tempo pressupõe considerar as três dimensões que a caracterizam, conforme sustenta Meneses: o artefato evidenciado pelos suportes materiais que a constituem, como o traçado, os arranjos espaciais, as arquiteturas; o campo de forças entendido como espaço de tensões e de acordos estabelecidos entre instituições e grupos sociais; por fim, a representação social revelada no universo dos sentidos, da cognição, das identidades e da memória. Convém observar, como sinaliza Meneses, que esta última dimensão não se encontra aprisionada na consciência dos indivíduos, mas circula, em permanente elaboração, entre representações de diferentes atores urbanos e práticas espaciais.

Esse enfoque favorece o entendimento da cidade como “bem cultural”, isto é, expressão de técnicas e de modelos estéticos, considerada como suporte de memória dos grupos sociais. Nesse sentido, falar em preservação do patrimônio urbano comporta necessariamente rememorar, discutir sobre a representatividade de determinada produção material, sobre os vínculos existentes entre os habitantes e o ambiente, sejam esses de natureza cognitiva ou afetiva. Assim, trata-se de examinar um processo de construção coletiva que articula matrizes materiais e imateriais não apenas como sobreposição de camadas de tempo, mas também como uma operação de cancelamento marcada por um filtro de seleção e caracterizada por condutas de identificação, reconhecimento e atribuição de valores, em constante disputa.

O objetivo central deste artigo corresponde à investigação de intervenções que lidam com o enfrentamento das preexistências de interesse histórico e cultural, procurando explorar não só as conexões visuais e espaciais estabelecidas entre a intervenção e a preexistência, mas especialmente a interpretação do material histórico que está em jogo na formulação do novo projeto. Foram selecionadas propostas pautadas por uma aproximação crítica rigorosa em relação às estruturas remanescentes, sem, no entanto, considerá-las como bens intocáveis, mas sim como legados do passado reinseridos no ciclo do presente.

Essa abordagem parte do cruzamento da contribuição de Michel De Certeau (1925-1986) que, em a A invenção do cotidiano, transita pela filosofia e sociologia, sublinhando as relações entre lugar, identidade e memória, em sintonia com o Narrador de Walter Benjamin (1892-1940), em sutil tensão com a reflexão de Giovanni Carbonara (1942) que, em Architettura d’oggi e restauro, afronta o tema da inserção da arquitetura contemporânea em tecidos consolidados, o confronto entre o novo e o antigo, aproximando a crítica contemporânea às proposições do campo da preservação e do restauro dos bens culturais. Foram selecionadas duas obras de Carlo Scarpa (1906-1978), com o propósito de sinalizar suas posturas e alguns pontos de convergência com as considerações metodológicas dos autores aqui mencionados.

Um passeio conduzido pelas proposições de Carbonara, Benjamin e De Certeau

A contribuição de Michel De Certeau interessa aqui por afastar-se dos cânones mais rígidos de produção científica, com o intuito de usufruir de estratégias distintas das lógicas institucionais e acadêmicas convencionais e que, por isso mesmo, colaboram para construir uma alternativa propensa ao estreitamento das relações entre os organismos de cultura e de preservação do patrimônio e a vivência dos habitantes da cidade. Em seu livro, A invenção do cotidiano – Artes de fazer, ao tratar das “práticas de espaço”, o autor ressalta o fato de que só é possível habitar em lugares povoados por lembranças, lugares equiparáveis a relatos fragmentários de tempos embaralhados, como narrativas à espera de releituras e novas interpretações:

Só há lugar quando frequentado por espíritos múltiplos, ali escondidos em silêncio, e que se pode ‘evocar’ ou não. Só se pode morar num lugar assim povoado de lembranças – esquema inverso daquele do Panopticon. (…) Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor e no prazer do corpo [4].

A referência ao panopticon, presente na citação acima, ecoa em inúmeras passagens do texto em que De Certeau se posiciona contrariamente ao pensamento acadêmico moderno, ao “totalitarismo funcionalista”, por considerá-lo em descompasso com as transformações sociais do mundo contemporâneo, ao apresentar-se como conhecimento isento, produzido em esferas eruditas, distanciadas do embate com a realidade do ambiente cotidiano. O autor faz menção explícita às estratégias do planejamento urbano vigentes na primeira metade do século XX, das quais a Carta de Atenas (1933) é a súmula e o modelo de atuação.

As práticas e os relatos de espaço são táticas fundamentais, segundo o autor, para a ativação da memória e a reconquista da familiaridade com o espaço urbano, do sentimento de pertença e da própria capacidade de habitar a cidade. Ao analisar as relações entre a identidade e os lugares, o autor estabelece uma analogia com o momento da infância em que o bebê se descobre como indivíduo separado da mãe, passagem descrita por Freud como “o ato de pisar o solo da terra-mãe”. Em seguida, cria uma conexão entre essa passagem e o desejo expresso por Wassily Kandinsky, em seu livro, Do espiritual na arte:

A infância que determina as práticas do espaço desenvolve a seguir os seus efeitos, prolifera, inunda os espaços privados e públicos, desfaz as suas superfícies legíveis e cria na cidade planejada uma cidade ‘metafórica’ ou o deslocamento, tal como a sonhava Kandisnky: ‘uma enorme cidade construída segundo todas as regras da arquitetura e de repente sacudida por uma força que desafia os cálculos [5].

Encontra-se na obra do historiador e filósofo francês uma afinidade entre a figura do pedestre em suas práticas do espaço e a figura do narrador de Walter Benjamin que remete a uma tradição compartilhada, na medida em que pequenas experiências particulares passam a configurar algo mais do que uma existência individual, transcendendo a esfera particular e, com isso, caracterizando uma memória viva e pulsante de dimensão coletiva [6]. Nesse texto, o Narrador, o filósofo alemão esboça, com o declínio da narrativa tradicional, a possibilidade de uma narração feita a partir de fragmentos de relatos, uma transmissão entre ruínas de uma tradição, uma renovação problemática da memória. O narrador como a figura de um catador de sucata, movido pela pobreza, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder, nada ser esquecido, apanha aquilo que é deixado de lado, como algo sem muita significação, que não tem importância, nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer [7].

Não resta dúvida de que as megacidades atuais compreendem sistemas urbanos nos quais não mais se aplicam as competências da arquitetura próprias das cidades haussmannianas do século XIX, ou mesmo das estratégias que inspiraram Le Corbusier no século XX. No entanto, estão em aberto as possibilidades de debate a respeito das novas práticas cabíveis no cenário contemporâneo, o que sugere a oportunidade de examinar criticamente diferentes posturas potencialmente compatíveis com o caráter fragmentário dos atuais territórios metropolitanos e dos seus elementos constitutivos.

Giovanni Carbonara é aqui mencionado como autor de inúmeras publicações sobre o tema da restauração de monumentos, tidas como referências imprescindíveis do campo disciplinar. Foi diretor da Escola de Pós-Graduação para o Estudo e Restauro de Monumentos da Universidade La Sapienza de Roma entre 1995 e 2013, e recebeu recentemente o Prêmio ICCROM 2017, por sua larga experiência no campo da preservação do patrimônio cultural, seja pela participação intensa em intercâmbios acadêmicos e culturais, seja pela coordenação e consultoria em obras de restauração de grande relevância internacional.

Em seu livro Architettura d’oggi e restauro: un confronto antico-nuovo (2011), considera abordar um tema de grande atualidade, interessado não apenas em investigar a respeito da área específica do restauro arquitetônico e urbano, mas em discutir também o problema da inserção da arquitetura contemporânea no tecido dos centros antigos, ou ainda em estender o debate à relação entre as novas construções e o ambiente, uma intervenção envolvida “com questões de sensibilidade para com os sítios, o genius loci e as preexistências em geral” [8]. Trata-se de uma publicação que se vale de numerosas citações, como que a estabelecer “uma rede de referências, em um contexto rico de contrastes e profundas diversidades de visões, e um guia à leitura, à verificação e ao aprofundamento pessoal” [9]. Ao tratar do tema, observa o autor, emerge a discussão sobre a qualidade do projeto, o que comporta uma árdua discussão, afrontada a partir de uma privilegiada posição de consultor do Comitato Tecnico-Scientifico del Ministero per i Beni Culturali

O autor indica várias categorias de classificação referentes à aproximação novo/antigo, mesmo que a título provisório, com o propósito de conduzir a reflexão. A listagem é construída segundo uma progressão que parte da mera proximidade física e se desloca em direção a uma espécie de convivência, de recíproca interação formal (con-formação dialética), até abranger uma modalidade de autêntica soldagem, “uma fusão diacrítica” [10], no entender do autor. Assinala que essa progressão não representa qualidade e coerência, pois em cada uma das classes pode-se identificar méritos e fragilidades. Não é, portanto, uma mera busca de métodos ou modelos de intervenção a orientar a análise crítica.

Em matéria de restauro, como intervenção mais rigorosa e específica, o autor se posiciona alinhado à postura do restauro crítico-conservativo, uma variante mais contida do restauro crítico-criativo proposto por Renato Bonelli nos anos 1940-50, registrado no verbete ‘restauro’ da Enciclopedia Universal dell’Arte (1963). Pontua as motivações dessa conduta que, nos anos 1960, por influência da corrente de pensamento conhecida como nouvelle histoire, tende a ampliar a atenção às expressões de ‘cultura material’, ou seja, aos ‘testemunhos materiais portadores de valores de civilização’, um alargamento dos interesses de tutela, para além das tradicionais ‘obras de arte’. Nessa perspectiva, explica Carbonara, o restauro caracteriza-se por um dúplice papel, de um lado ‘conservativo’, de outro ‘revelativo’, no sentido de ‘facilitar a leitura’ dos testemunhos de história e de arte. Dessa visão, descende a definição de Paul Philippot de “restauro como hipótese crítica não expressa verbalmente mas concretizada em ato” [11], com todos os problemas ligados à remoção de acréscimos e à reintegração de lacunas, ou ao controle dos êxitos formais da criatividade exercida. Tal valor de hipótese e não de certeza absoluta, assinala Carbonara, torna claro o sentido dos critérios de orientação amplamente aceitos: a distinguibilidade, a mínima intervenção e o respeito à autenticidade.

Reclama-se, portanto, grande clareza conceitual, extrema cautela e consciência profissional, uma segura competência técnica e, sobretudo, histórico-crítica. Na base de toda intervenção deve estar uma rigorosa indagação e pesquisa, quer em operações de restauro stricto sensu, quer em autênticos exercícios de ‘puro’ e ‘moderno’ projeto de arquitetura ex novo, quer em intervenções de recuperação ou qualificação arquitetônica.

Intervenções em preexistências como sutura entre arquitetura e cidade

A città analoga de Aldo Rossi, um experimento bastante discutido desde sua exposição na Bienal de Veneza de 1976, é uma das referências mais célebres da recente cultura arquitetônica italiana relacionada à memória como inventário de legados do passado e, ao mesmo tempo, mote de criação para o presente. Elaborada com a colaboração de Bruno Reichlin, Fabio Reinhart e Eraldo Consolascio, seus assistentes no Politécnico de Zurique, tornou-se uma significativa representação de uma cidade imaginária situada em uma zona indefinida entre memória e desejo, resultante de uma colagem que reunia fragmentos urbanos, arquiteturas históricas e projetos de Rossi (Fig.1).

Fig.1. La Città Analoga. Aldo Rossi, et. al., 1976. Fonte: <http://ilgiornaledellarchitettura.com/web/2016/04/07/aldo-rossi-alla-finestra-del-poeta/>, acesso em 05 mar. 2107.

Recuperar fragmentos contidos no tecido da cidade possibilita estabelecer uma conexão entre passado e presente, destacar a importância da memória no processo de produção da arquitetura como construção da forma no tempo, rever as relações entre o novo e o antigo, as tensões entre permanência e transformação que se expressam nos tempos atuais e, por fim, examinar como a produção contemporânea expressa essas tensões.

A Fundação Querini Stampalia (Carlo Scarpa, Veneza,1949-59)

Às estruturas remanescentes são justapostos elementos de arquitetura contemporânea em um espaço cultural criado pelo Conde Giovanni Querini Stampalia em meados do século XIX, proposto desde a sua fundação como um lugar dedicado ao conhecimento pessoal e ao confronto de diversas culturas.

Em 1949, o arquiteto veneziano Carlo Scarpa recebeu a incumbência de reordenar o piso térreo e o jardim da Fundação, localizado no fundo do lote, que se encontrava em estado de grave abandono. No entanto, a realização da obra ocorreu somente dez anos mais tarde, sob a coordenação de Giuseppe Mazzariol, amigo e colaborador do arquiteto, que segue rigorosamente o projeto de Scarpa. A intervenção é pautada pela aproximação de elementos novos cuidadosamente empregados em respeito ao conjunto existente, concedendo à água o papel de verdadeira protagonista da cenografia desenhada: a partir do canal lindeiro ao edifício, o arquiteto organiza percursos para conduzi-la ao interior. No jardim encontra-se um amplo tanque em diferentes níveis composto de bronze, concreto e mosaico, com um pequeno canal em cujas extremidades são dispostos dois pequenos labirintos em alabastro e pedra de Istria.

O estudioso italiano Manfredo Tafuri reconhece certa ambiguidade nessa intervenção: refere-se a um “jogo de sabedoria formal sobre fragmentos, portanto, organização aberta de frases interrompidas: a linguagem scarpiana parece baseada numa poética que – forçando a interpretação – alguém pode ler em chave ‘melancólica’, como translação moderna da alegoria barroca de benjaminiana memória” [12]. A seguir submete sua própria crítica à interrogação: não seria o fragmento, enquanto ruína, ligado a uma condição irreparavelmente perdida, que recusa a própria autonomia, o que legitimaria o procedimento e o resultado alcançado? Para respondê-la, recorre a Maurice Blanchot, que a define como “poema incompleto, mas que abre outro modo de desfecho: aquele modo que é um jogo na espera, no interrogar ou em uma afirmação irredutível à unidade” [13]. Essas indagações sinalizam que obras descontínuas poderiam sugerir um novo modo de acréscimo, não necessariamente racional e funcional (Fig.2).

Fig.2. Fondazione Querini Stampalia, Veneza. Carlo Scarpa. Foto de Marco Valmarama. Fonte:  < https://www.veneziadavivere.com/en/fondazione-querini-stampalia/>, acesso em 05 mar. 2017.

“Voglio vedere le cose, non mi fido che di questo. Le metto qui davanti a me sulla carta, per poterle vedere. Voglio vedere e per questo disegno. Posso vedere un’immagine solo se la disegno” [14]. Quero ver as coisas, confio unicamente nisso. Coloco-as diante de mim no papel, para vê-las. Quero ver e por isso desenho. Posso ver uma imagem somente se a desenho.

A obsessão pelos detalhes não é ditada pela frivolidade do artifício. Mais precisamente por uma exigência de uma materialidade difícil, não plenamente controlada pela representação gráfica. O detalhe é, ao mesmo tempo, fragmento e afirmação do projetista diante da possível objeção do artesão, do operário do canteiro, responsável pela sua execução. Une observação dos lugares e da história, capacidade cognitiva e criativa, eficácia na comunicação.

Como um músico individua e dá espaço, na feitura de uma sinfonia, às classes de instrumentos e a cada um deles, e deve atender, todavia, à verificação de uma execução. Assim, Carlo Scarpa divide, nos tempos sucessivos do seu projetar, as intuições sobre a página e projetar torna-se, portanto, novamente, o relacionar entre as obras e as preexistências e reexaminá-las, em uma imagem que é por sua vez, em uma espiral, um detalhe. [15]

O Museu del Castelvecchio (Carlo Scarpa, Verona, 1958-64)

A intervenção de Scarpa no conjunto medieval construído sobre preexistências romanas, transformado em museu, possibilita que o usuário, ao se deslocar no espaço interno, usufrua da narrativa arquitetônica composta tanto pela seleção criteriosa de apagamentos pontuais tidos como acréscimos sem qualidade produzidos no transcurso do tempo, quanto pela inserção de elementos novos de concreto, pedra, madeira e metal, dotados da sua linguagem e técnica inconfundível, aproximados aos materiais antigos, de outra feitura, deixando rastros para uma nova apropriação e releitura da preexistência.

O crítico italiano Francesco Dal Co, ao comentar a obra de Scarpa [16], marca sua posição contrária à interpretação de certo crítico anglo-saxônico, não nomeado, mas cujas pistas levam a Reyner Banhan. O que a crítica anglosassone interpreta erroneamente como artifício, motivado pela falta de erudição, no entender de Dal Co representa a apreensão de uma cultura genuína, o domínio do ofício, equivalente à afirmação de um dialeto do fazer arquitetônico. Destaca, dessa forma, a atuação de Scarpa como resultado da apropriação do saber dos artífices. Uma experiência que articula, portanto, os princípios do movimento moderno, seu parentesco com a produção Art Nouveau e com a poética neoplástica, acrescida de uma intensa admiração pelos desenhos wrightianos, e de uma observação prolongada das práticas tradicionais. Um traço que se evidencia em diversos aspectos do seu trabalho, tais como: nos desenhos vistos como processos contínuos de aprimoramento, como pensamento expresso graficamente, voltado à invenção; no cuidado com o detalhe, elemento essencial de articulação entre as partes e o todo; na narrativa poética presente na sua composição arquitetônica.

Uma das principais características do conjunto histórico, produto da sobreposição paulatina de várias camadas de tempo, comum na arquitetura dos castelos antigos, era a sucessão de espaços compartimentados. Scarpa, com sua operação calculada de subtração, produz sequências espaciais em continuidade, favorecendo a apreciação do acervo meticulosamente disposto em apropriados suportes de diferentes formatos e dimensões. A escultura equestre de Cangrande, uma magistral concepção museológica, colocada ao final do percurso interno de visitação, contudo, já anunciada ao público no lado externo, antes mesmo de se adentrar no espaço interno, como uma aparição fantástica, visível em uma das extremidades do conjunto arquitetônico, sinaliza de modo inequívoco a reedição do castelo medieval [17] (Fig.3).

Fig.3. Museu de Castelvecchio, Verona. Carlo Scarpa, Foto de Giulio Ghirardi. Fonte: <http://www.theblogazine.com/2013/10/the-poetry-of-castelvecchio/>, acesso em 05 mar.2017.

Interessante atentar para esse operar de outros tempos, como uma espécie de ritual, do qual é elemento imprescindível o desenho elaborado à mão, os croquis aparentemente exaustivos, elaborados como especulação provocada pela repetição, pela observação demorada dos detalhes, essencialmente expressivos e absolutamente resolutivos. A técnica e a experiência prolongada permite reexaminar os procedimentos enquanto se prolonga a elaboração dos desenhos e dos detalhes. Linguagem e discurso consentem uma relação íntima e privilegiada com aquele “mago indisciplinado que é a memória involuntária” [18], contra cada aparência de veracidade, traindo uma original inclinação sistemática que caracteriza a sua pesquisa. Exatamente porque entrelaçada a uma contínua meditação sobre natureza do projeto arquitetônico, tal pesquisa é capaz de acolher de modo profícuo a rememoração como componente essencial do fazer, resistindo às irrupções das acelerações do tempo histórico (Fig. 4).

Fig.4. Planta do térreo do Museu de Castelvecchio com a definição dos percursos e disposição das esculturas. Carlo Scarpa. Arquivo Scarpa. Fonte: <http://www.archimagazine.com/acescarpa.htm>, acesso em 05 mar.2017.

A assinalar a sobreposição de camadas de intervenção no Museu de Castelvecchio após os trabalhos de Scarpa, registra-se aqui o restauro da Torre do Relógio, do jardim suspenso e da estrutura junto às ameias das muralhas do lado sudoeste, com a abertura do percurso superior ao público, ocorrida em 2007. O projeto é do arquiteto Giuseppe Tommasi e consistiu na consolidação das peças de madeira do piso da torre, de modo a sustentar a estátua equestre de Mastino II della Scala, juntamente com a escada de acesso à cota superior, composta de chapas dobradas de aço corten, que estabelecem certa tensão com a obra de Scarpa [19].

Como realização póstuma, o redesenho do acesso ao Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (IAUV) desenvolvido entre os anos 1966-76, foi realizado em 1983, sob a coordenação de Sergio Loos, um antigo colaborador, seguindo uma rigorosa reconstrução filológica dos estudos e desenhos de projeto de Scarpa. A nova organização da entrada tem como traço peculiar a manutenção da desmontagem do antigo portal em forma de arcada, e da sua deposição horizontal, tratando unicamente de definir o desenho do espelho d’água de perímetro recortado e diferentes níveis (Fig. 5). 

Fig. 5. Entrada do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza. Fonte: <http://synergiaprogetti.com/it/istituzioni-educative/item/268-sistemazione-dell%E2%80%99entrata-iuav-su-un-progetto-di-carlo-scarpa.html>, acesso em 05 mar. 2017.

Transitando entre memória e criação

Ulpiano Bezerra de Meneses discorre sobre o entrelaçamento entre os aspectos físicos e as formas de representação da cidade, uma associação entre as evidências materiais e os significados a elas atribuídos, explicando que a cidade não é apenas um artefato socialmente produzido, mas é também representação, imagem, na medida em que as formas estão impregnadas de sentido. A esse respeito, interessa-nos a articulação entre práticas e representações, com base na compreensão de que convém superar a polaridade entre patrimônio material e imaterial, na medida em que todo artefato entendido como patrimônio material tem também uma dimensão imaterial, de significado e valor, ao mesmo tempo em que todo patrimônio imaterial tem como suportes vetores materiais. A partir disso, exercitar uma forma de aprendizado nos moldes de uma apropriação estética e cognitiva do espaço urbano, como uma redescoberta, uma familiarização com a dimensão física do espaço urbano, poderia suscitar uma conexão com o imaginário cotidiano.

O projeto contemporâneo, observado sob a perspectiva de Michel De Certeau, pode ser fortalecido como proposição de espaços de habitabilidade, animados pela criação de novas narrativas, de relatos maravilhosos, que sobrepõem, entrecruzam e empilham tempos, histórias, fábulas de texto urbano, conectando passado e presente, subscrevendo novas legendas, elaborando inventários e legendários contemporâneos, como uma alternativa ao funcionalismo-racionalismo generalista que teria subtraído ou sufocado a representação simbólica e os relatos cotidianos. Sob esse ponto de vista pode-se estabelecer uma aproximação com a reflexão de Meneses, que se contrapõe à naturalização das propostas de solenes equipamentos culturais voltados aos edifícios históricos, que permanecem apartadas dos territórios das imediações e, por isso mesmo, não contribuem para dinamizar as atividades do lugar. Como bem observa Meneses, a memória está para o tempo, assim como a pertença está para o espaço.

De Giovanni Carbonara ressaltamos a contribuição que recorre aos fundamentos do estruturalismo, reafirmando sua convicção na essencial ligação entre restauro e historiografia, como disciplina fundada sobre a interpretação, guiada, porém pela peculiar natureza do próprio restauro, que se remete aos princípios da hermenêutica, como teoria da interpretação, e se desenvolve ao redor da sutil dialética de objetividade do texto e de subjetividade da interpretação.

Preservar não significa parar no tempo, mas transformar com controle e com a responsabilidade de não se cancelar os vestígios culturalmente significativos do passado. A memória pode ser entendida como ferramenta de resistência à fugacidade, de demarcações de identidade, de território de recriação e reordenamento da existência. Cada ação contemporânea comprometida com a cultura do restauro coloca-se como um novo estrato que reclama a dimensão de projeto, desde que não conflite com a premissa de conservação e seja precedido por um estudo rigoroso dos aspectos materiais, figurativos e documentais da obra submetida à intervenção. 


Notas

[1] Este artigo revê e aprofunda questões tratadas em uma comunicação apresentada no IV Seminário Arquitecturas-Imaginadas: Representação Gráfica Arquitectónica e Outras Imagens, realizado Na ETSAM (Escuela Técnica e Superior de Arquitectura de Madrid), de 17 a 18 de maio de 2017.

[2] Françoise Choay, no capítulo “A invenção do patrimônio urbano”, introduz o processo de alargamento das noções teóricas e das práticas patrimoniais, com base no relato das discussões que acompanharam a execução do Plano Haussmann, na capital francesa, e dos desdobramentos da revolução industrial. Como explica a autora, o conceito de patrimônio urbano “constituiu-se na contramão do processo de urbanização dominante”. Para aprofundar o tema, ver CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. Tradução Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2001, p.175-203.

[3]  O historiador Ulpiano T. Bezerra de Meneses trata de questões ligadas ao entendimento da cidade como um bem cultural, dedicando especial atenção às relações entre as práticas oficiais de preservação e as práticas sociais de valoração do patrimônio, valendo-se de sua longa experiência no CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo). Ver MORI, Victor H. et. al. (org.). Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9ª S. R. IPHAN, 2006.

[4] DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Artes de fazer, 3ª ed., 1998, p.189.

[5] Idem, p. 191.

[6] BENJAMIN, Walter. O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Em: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 27.

[7] Essa interpretação a respeito da figura do narrador de Benjamin está contida no ensaio de Jeanne Marie Gagnebin intitulado “Memória, história testemunho”, reunido a outros no livro Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, pp. 49-57.

[8] Giovanni CARBONARA, Premessa, in: Architettura d’oggi. Un confronto antico-nuovo, 1ª ed. Milano, 2011, s/p. Tradução da autora.

[9] Idem.

[10] Idem, p. 111.

[11] Idem, p. 71.

[12] Francesco DAL CO; Giuseppe MAZZARIOL (orgs.). Carlo Scarpa 1906 1978. Milão: Electa, 1984, p. 77 (Texto de Manfredo Tafuri). Tradução da autora.

[13] Idem, p. 77.

[14] Idem, p.53.

[15] Idem, Introdução, p. 19 (Texto de Giuseppe Mazzariol; Giuseppe Barbieri).

[16] Em palestra proferida sobre a obra do arquiteto veneziano, na Bienal de Arquitetura de São Paulo, 2005.

[17] ZEVI, Bruno. Controstoria dell’architettura. Ottocento novecento. Roma: Newton & Compton, p. 90.

[18] Idem, p. 24 (Texto de Francesco Dal Co).

[19] As informações detalhadas sobre a intervenção de Restauro da Torre do Relógio do Museu de Castelvecchio e do percurso superior aberto ao público estão disponíveis em <http://www.archimagazine.com/acescarpa.htm>. Acesso em 23 jun.2017.


Referências bibliográficas

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CARBONARA, Giovanni. Avvicinamento al restauro, Teoria, storia, monumenti. Nápoles: Liguori, 1997.

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CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

MENESES, Ulpiano B. de, A cidade como bem cultural – áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance da preservação do patrimônio ambiental urbano. In: MORI, Victor Hugo et. al. (org.), Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9ª SR/IPHAN, 2006.

ZEVI, Bruno. Controstoria dell’architettura. Ottocento novecento. Roma:Newton & Compton, 1996.


Eneida de Almeida

Professora na Universidade São Judas Tadeu, exerce atividades de ensino na Graduação e pesquisa no Mestrado em Arquitetura e Urbanismo.


logo_rr_pp   v.3, n.5 (2019)   

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