As “Casas Modernistas” do Recife: consulta aos especialistas com vistas ao projeto de restauro

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| Maria Antônia Saldanha Pessoa de Queiroz e Flaviana Barreto Lira |

É na zona norte do Recife, em uma via de alta circulação de pessoas, que se encontram as “Casas Modernistas”, assim conhecidas na cidade. São dois imóveis geminados construídos em 1958 (Fig.1), sob os números 625 e 639 (Fig.2), de autoria do arquiteto e artista plástico Augusto Reynaldo (1924-1958), cujo projeto traduz princípios compositivos comuns a exemplares da arquitetura moderna (Fig.3).

Fig.1. Casas Modernistas (fonte: Mariana Alves, 2008).

Fig.2. À esquerda, imóvel nº 625. À direita, imóvel nº 639 (fonte: Mariana Alves, 2008).

Fig.3. Interior do imóvel nº 625 (fonte: Mariana Alves, 2008).

As Casas Modernistas, antigas moradias, são classificadas como Imóveis Especiais de Preservação (IEP), que, de acordo com a Lei municipal Nº 16. 284/97, são exemplares isolados de arquitetura significativa para o patrimônio histórico, artístico e/ou cultural da cidade do Recife. Segundo a mesma lei, o título de IEP deve resguardar o bem de sua descaracterização, entretanto, os imóveis, desde 2014, sofreram sucessivas ações de depredação que puseram em risco esse patrimônio material (Fig.4 e 5).

Fig.4. Casas modernistas após sucessivas depredações (fonte: Maria Antônia Saldanha, 2018).

Fig.5. Quarto do imóvel nº 625 após a remoção das esquadrias, piso e parte do armário (fonte: Maria Antônia Saldanha, 2018).

O estado atual das Casas Modernistas exige um cuidadoso restauro que envolve desafios, entre outros, na esfera teórica da conservação da arquitetura moderna e nos domínios da técnica e do material do edifício. Tendo como base o marco teórico e metodológico da teoria da restauração [1] e o conhecimento dos atributos patrimoniais e dos valores atribuídos aos imóveis, foi possível compreender e vislumbrar caminhos para a construção de diretrizes projetuais que buscassem respeitar a significância cultural das Casas Modernistas.

Esse conhecimento teórico-metodológico e do objeto de intervenção serviu de substrato para a construção de uma dinâmica com especialistas, elaborada por essas autoras, que permitiu a hierarquização da importância de cada ambiente, bem como a validação coletiva das posturas de intervenção sobre o bem.

Os desafios inerentes à conservação da arquitetura moderna e às particularidades que envolvem o processo de arruinamento das duas Casas, somados ao interesse acadêmico neste projeto, impulsionaram a construção dessa atividade. Os olhares de sua montagem e formatação estiveram atentos, também, à conciliação entre a teoria contemporânea do restauro e as futuras decisões da gestão pública que envolvem esses dois imóveis.

A dinâmica ocorreu entre os especialistas da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural (DPPC), setor ligado à Prefeitura do Recife; da empresa Jorge E. L. Tinoco Restauração; do CECI / Curso de Gestão de Restauro e as autoras, representando a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Importante ressaltar que todos os participantes possuíam conhecimento prévio acerca dos imóveis.

As atividades iniciais dessa dinâmica se intercalaram entre a exposição teórica sobre a ferramenta de consulta e a explanação dos conceitos abordados. O instrumento de consulta foi elaborado com o objetivo de identificar, na opinião dos atores consultados, qual o grau de importância de cada ambiente que compõe as Casas Modernistas e quais posturas os especialistas recomendariam para cada atributo previamente determinado em cada um desses ambientes.

Foram debatidos os conceitos que fizeram parte do processo e do desenvolvimento da consulta, como o termo atributos, entendido “como toda e qualquer característica dos objetos e processos reconhecidos como tendo valor patrimonial quer físico-material ou não-material” [2]. Evidenciou-se, também, a diferença entre a utilização das definições de atributos e de valores, sendo estes resultados de uma construção social. Para elucidar ainda mais os conceitos utilizados, exemplificou-se que a significância cultural “equivale ao conjunto dos valores resultantes do julgamento e da validação social de significados passados e presentes de um objeto” [3].

Ainda, foi oportuno clarear o conceito de juízo intersubjetivo, pois se trata da resultante de uma convergência das consciências, por meio da qual a opinião de diferentes sujeitos deve gerar um consenso a respeito de uma determinada questão [4]. Algumas outras considerações foram levantadas para explicitar, conceitualmente, o encadeamento da significância cultural, autenticidade e integridade e como essas deveriam orientar as decisões referentes às intervenções futuras no imóvel.

Fig.6. Ilustração do encadeamento da significância cultural, autenticidade e integridade (fonte: Flaviana Lira, 2018).

Para essa dinâmica, foram utilizados recursos verbais e também imagéticos. A utilização dos recursos imagéticos vem sendo observada por importantes autores que dissertam sobre os limites derivados do uso exclusivo da linguagem verbal na metodologia de pesquisa em ciências humanas e sociais. Na opinião de Medina Filho, “a expressão imagética articulada com a expressão verbal fornece uma riqueza de informação que possibilita a ampliação das possibilidades de eficácia das pesquisas podendo levar a resultados finais mais precisos e satisfatórios” [5].

O imóvel modernista nº 625 foi escolhido como piloto para aplicabilidade da dinâmica, que foi dividida em duas etapas, tendo uma ficha como produto final de cada etapa. O objetivo da etapa 1 foi alcançar a hierarquização dos ambientes da casa nº 625, por meio do grau de importância entre eles na opinião do grupo consultado. A divisão da Casa em três setores (social, íntimo e serviço), aspecto relevante da arquitetura moderna, foi ressaltada nesse momento da apresentação.

Fig.7. Demonstração dos dezessete ambientes listados e as seus respectivos setores (fonte: Maria Antônia Saldanha, 2018).

Foi solicitado, então, que o grupo ordenasse por importância decrescente, do mais para o menos importante, os dezessete ambientes previamente listados (Fig.7). Cada ambiente foi representado por uma fotografia impressa, tamanho 10x15cm, utilizando as imagens mais antigas da casa que foram obtidas a partir do levantamento histórico. Portanto, a Casa Modernista nº 625 foi analisada pelos especialistas, nesta etapa do trabalho, munidos das fotografias de cada ambiente. Ao todo, foram dezessete fotografias que o grupo precisou ordenar de acordo com o grau de importância, buscando sempre o consenso. Com a dinâmica da aplicação da ficha 1, obteve-se a hierarquização dos ambientes sob o grau de importância (Fig.8).

Entre os ambientes listados, ao interpretar os dados obtidos, constatou-se que a varanda foi considerada o ambiente mais importante, na opinião dos especialistas, e o banheiro de serviço do pavimento superior, o menos importante.

Com base nos resultados originados da aplicação da ferramenta, foi possível definir em quais ambientes, prioritariamente, deverão ser utilizados os materiais originais coletados no decorrer do processo de arruinamento do imóvel, tais quais: as telhas cerâmicas originais, os tacos de madeira e o madeiramento.

A partir do resultado dessa etapa do trabalho, também foi possível atentar para quais cômodos da casa nº 625 poderiam ser mais ou menos passíveis de modificações no caso de uma futura intervenção. Entende-se, assim, que os ambientes que apareceram nas primeiras posições deveriam ser os menos modificados em virtude da sua importância diante da compreensão do todo, qualidade arquitetônica e estética, estado de conservação e/ou relevância na memória, na opinião dos especialistas.

Fig.8. Resultado obtido após a finalização da dinâmica da Ficha 1 (fonte: Maria Antônia Saldanha, 2018).

Após a conclusão dessa etapa, foi dado início à segunda etapa da dinâmica. Aqui, foram apresentados os atributos constituintes de cada um dos dezessete ambientes da casa (os mesmos já hierarquizados com a aplicação da primeira etapa) e foi solicitado aos especialistas que definissem a postura projetual mais pertinente para cada atributo listado. Os atributos foram identificados, previamente, através da pesquisa bibliográfica e iconográfica das autoras e, assim, classificados separadamente por cada ambiente (Fig.9). A desconstrução do imóvel em atributos visou proporcionar a apreensão da sua totalidade e possibilitar a compreensão das concepções materiais e imateriais do imóvel como uma unidade.

Fig.9. Atributos do imóvel identificados previamente e classificados separadamente por cada ambiente (fonte: Maria Antônia Saldanha, 2018).

Foram estabelecidas quatro diferentes posturas (Fig.10) para que os especialistas escolhessem apenas uma dentre elas para o tratamento de cada atributo: i) atributo perdeu as qualidades e poderá ser modificado; ii) restauração: “restabelecimento da substância de um bem em um estado anterior conhecido” (Carta de Burra, 1980); iii) consolidação do seu estado atual; ou iv) refazimento com novas técnicas e materiais. Aos especialistas, portanto, foi solicitado que escolhessem, para cada atributo, a postura que julgassem mais adequada.

Fig.10. Diferentes posturas apresentadas aos especialistas para que escolhessem a mais adequada para o tratamento de cada atributo (fonte: Maria Antônia Saldanha, 2018).

Previamente, as autoras também produziram, a partir do acervo fotográfico existente, montagens fotográficas ilustrando todos os atributos listados, de modo a ficar evidente dois momentos: o momento em que estes ainda estavam conservados; e o contraste com o momento atual (Fig.11). Em outras palavras, as fotografias tiveram fins comparativos do “antes” e do “depois” de cada atributo. A fotografia foi mostrada aos especialistas ao passo que cada respectivo atributo era analisado.

Fig.11. Exemplo de uma das montagens realizadas pelas autoras ilustrando o atributo “painel de azulejos” em dois momentos distintos (fonte: Maria Antônia Saldanha, 2018).

A exploração de cada atributo e a correlação com as recomendações das posturas desencadearam novas reflexões, buscando a articulação e a discussão entre o grupo para atingir o consenso. Assim, o grupo de especialistas, após as devidas considerações com relação a cada atributo, decidia coletivamente a postura a ser recomendada.

Ao correlacionar os resultados das fichas 1 e 2, constatou-se que os ambientes posicionados no topo da hierarquia tiveram poucas recomendações da postura que sugeria a modificação dos atributos, mesmo se encontrando em um estado de conservação bastante degradado. Foi possível, com isso, perceber que quanto maior a importância do ambiente (ficha 1), as posturas sugeridas (ficha 2) foram mais conservadoras e propensas a manter ou retomar ao atributo suas características similares aos originais.

O resultado foi convergente com o que dispõe Paula Silva [6] ao afirmar que “níveis elevados de significância exigem, a princípio, pequenas intervenções, e a integridade determina o quanto de modificação pode vir a acontecer”. Dito de outra forma, quanto mais valorado for um bem, menos se deve modificar os seus atributos patrimoniais [7].

Depois de concluída essa etapa da dinâmica, foi possível, a partir das posturas recomendadas para cada atributo, apontar diretrizes projetuais para cada cômodo visando restituir a sua integridade perdida ou, utilizando o termo proposto por Cesare Brandi [8], restituir sua unidade potencial.

A sistematização dessa experiência significou um aprofundamento nas reflexões acerca da conservação da arquitetura moderna, tendo o imóvel nº 625 como objeto empírico. A experiência incluiu, ainda, novas possibilidades de critérios de análise e de métodos para alicerçar não só o projeto de restauro dessa edificação, mas também outros projetos que porventura venham a acontecer.

Notou-se, também, a importância de estarem presentes especialistas do setor público responsável pela preservação do patrimônio cultural recifense, além de profissionais atuantes e de grande reconhecimento no campo do restauro, assim como profissionais da UFPE, nos âmbitos do projeto, do urbanismo e da conservação.

A dinâmica resultou em uma maior firmeza e rigor nas futuras demandas que envolvem a temática do restauro. Nesse sentido, foi importante a leitura das Casas a partir da dupla polaridade história e estética: intervir sem comprometer a leitura do espaço, que corresponde ao fato basilar da artisticidade pela qual a obra de arte é obra de arte, mas valorizando as marcas de seu tempo e o peso que a história traz.

No campo da conservação, a teoria do restauro trouxe o lastro teórico e metodológico fundamental para a ação projetual nos imóveis. Foram os princípios da via crítica do restauro que, sintetizados, operacionalizaram e deram subsídios para a elaboração desse trabalho, comprometido com os valores atribuídos ao bem e com a manutenção da autenticidade de sua matéria e de seu espírito.

O restauro como ato crítico apresenta variadas soluções possíveis para um problema. Não existe exclusivamente uma solução plausível, aceita unanimemente e válida por tempo indeterminado [9]. O modo de atuar nas intervenções depende de como o bem é percebido e as respostas por ele dada são relacionadas às questões e indagações formuladas por um presente histórico [10]. Entretanto, isso exposto, não exime a responsabilidade da ação fundamentada em sólida base teórica e em princípios éticos para afastar o empirismo.

Importante salientar que serão o direcionamento e os detalhes do projeto trabalhados futuramente que irão interferir na autenticidade do bem. Paula Silva, mais uma vez, traz uma contribuição relevante nesse sentido quando afirma: a intervenção ocorre para resgatar, consolidar ou adicionar valores material, estético, social, de uso etc., valores que, nem sempre, podem continuar existindo simultaneamente [11].

Sabe-se que inúmeros exemplares de residências modernas já desapareceram em Recife e, com isso, foram apagados os traços de gerações passadas e privadas as gerações futuras da possibilidade de conhecê-los [12]. Assim, a aplicação da dinâmica representou uma rica oportunidade de pensar uma edificação moderna fundamentando-se num método claro de construção das posturas de intervenção sobre o bem, validado coletivamente por um grupo de especialistas, permitindo o estímulo de ideias a serem debatidas visando a conservação do patrimônio histórico.


Notas

[1] BRANDI, C.; Teoria da Restauração. Tradução Beatriz Mugayar Kühl; Revisão Renata Maria Parreira Cordeiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

KÜHL, B. M. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização. Problemas Teóricos de Restauro. Cotia: Ed Ateliê Editorial, 2008.

[2] ZANCHETI, S. M.; HIDAKA, L. T. F.; A declaração de significância de exemplares da arquitetura moderna. Olinda: ed. Centros de Estudos Avançados da Conservação Integrada, 2014, p.4.

[3] ZANCHETI, S; DOURADO, C; CAVALCANTI, F; LIRA, F; PICCOLO, R. Da autenticidade nas cartas patrimoniais ao reconhecimento de suas dimensões na cidade. Olinda: ed. Centros de Estudos Avançados da Conservação Integrada, 2009.

[4] LIRA, F. Patrimônio Cultural e Autenticidade: Montagem de um sistema de indicadores para o monitoramento. 1. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010.

[5] MEDINA FILHO, A. L. de. Importância das imagens na metodologia de pesquisa em  psicologia social. Psicol. Soc. 2013, vol.25, n.2, pp.263-271. Rio de Janeiro, 2013.

[6] SILVA, P. M. Conservar, uma questão de decisão. O julgamento na conservação da arquitetura moderna. Recife: UFPE, 2012, p.52.

[7] LIRA, F. Da natureza complexa dos bens culturais: a indissociabilidade entre significância cultural, integridade e autenticidade. In: V ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE PATRIMÔNIO EDIFICADO – ARQUIMEMÓRIA, 2017, Salvador. Anais… Salvador, Departamento da Bahia do Instituto do Arquitetos do Brasil, 2017.

[8] BRANDI, C. Teoria da Restauração. Tradução Beatriz Mugayar Kühl; Revisão Renata Maria Parreira Cordeiro. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

[9] KÜHL, B. M. História e Ética na Conservação e na Restauração de Monumentos Históricos. Revista CPC, São Paulo, v.1, n.1, p. 16-40, abr. 2006. Disponível em: <http:// www.usp.br/cpc/v1/imagem/conteudo_revista_arti_arquivo_pdf/kuhl_pdf.pdf>. Acesso em: 08 set. 2018.

[10] Ibidem.

[11] SILVA, P. M. Conservar, uma questão de decisão. O julgamento na conservação da arquitetura moderna. Recife: UFPE, 2012.

[12] KÜHL, B. M. Preservação do Patrimônio Arquitetônico da Industrialização. Problemas Teóricos de Restauro. Cotia: Ed Ateliê Editorial, 2008.


Maria Antônia Saldanha Pessoa de Queiroz é Mestranda em Desenvolvimento Urbano pela UFPE (2019). Arquiteta e urbanista graduada pela UFPE (2018). Administradora de empresas graduada pela UPE (2013). E-mail: antoniasaldanha@hotmail.com

Flaviana Barreto Lira é professora adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/ UnB). Arquiteta e Urbanista graduada pela UFPE (2004). Doutora em Desenvolvimento Urbano pela UFPE (2009). Autora do livro “Patrimônio Cultural e Autenticidade: Montagem de um sistema de indicadores para o monitoramento” (Editora UFPE: Recife, 2011). E-mail: flavianalira@hotmail.com


logo_rr_pp   v.3, n.5 (2019)   

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