Arquitetura e construção com terra: taipa de pilão

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| Marcio Vieira Hoffmann  |

Para bem intervir em edifícios antigos, é preciso conhecer as técnicas construtivas usadas no passado. No entanto, ao propor a reutilização dessas técnicas no restauro ou em novas construções, deve ser rejeitado qualquer tipo de “saudosismo”. Nas construções contemporâneas sem terra é preciso pensar em inovação, em todos os sentidos [1]. Devem ser propostos, além de novos materiais ou materiais compósitos, desenhos que permitam explorar ao máximo o potencial da taipa, a exemplo do que já fazem os arquitetos da SURTIERRA [2] no caso do pau a pique (chamado de quincha no Chile e alguns outros países hispanófonos).

O uso de novos sistemas e equipamentos na construção de novos edifícios em terra promovem mudanças na maneira de construir, que conferem maior sustentabilidade. As inovações trazem como benefício, menor consumo de energia e de água, total reciclagem, reversibilidade do material e participação dos trabalhadores nos processos de decisão. Nas obras de conservação e restauro, essas inovações ampliam o repertório de opções projetuais e permitem a melhora tanto da qualidade como do desempenho do edifício.

Fig.1 - SURTIERRA. Casa MunitaGonzales, Batuco, Chile, 2011. Luis Garcia, Pablo Alvear, www.surtierraarquitectura.cl

Fig.1 – SURTIERRA. Casa Munita Gonzales, Batuco, Chile, 2011. Luis Garcia, Pablo Alvear. (fonte: www.surtierraarquitectura.cl)

A arquitetura de terra

A arquitetura e a construção com terra têm uma longa história. Há relatos de adobes datados de 5.000aC. Monumentos construídos com esse material, em diferentes momentos históricos e com as mais diversas técnicas, resistem bravamente ao tempo em todos os continentes. Não é, porém, tarefa fácil identificar as influências e as trocas de conhecimento entre os construtores. Apesar de ser muito comum encontrar textos que descrevam uma rota da arquitetura de terra, vinda do norte da África para a Europa e de lá para a América, a historiadora Juana Font descarta firmemente essa ideia:

Decir que fueron las gentes islámicas las que llevaron a la Península Ibérica el empleo de la construcción con tierra es ignorar las obras de autores tan importantes como los llamados Agrónomos Latinos, las de Plinio el Viejo y sobre todo las de Isidoro de Sevilla que considera un rasgo típico de la construcción de Hispania (Portugal y España) la realizada con tapia y con adobes muchos años antes de que llegaran los sarracenos a su suelo [3].

Na América, os mais antigos monumentos em terra são devidos às culturas pré-incaicas estabelecidas ao norte do Peru. No Brasil os monumentos em terra são bem mais recentes. Existem algumas obras do século XVII, como as poucas partes restantes da muralha de Salvador e muitos edifícios construídos nos séculos XVIII e XIX, como a Igreja do Embu, em São Paulo.

De qualquer modo, fica claro que as construções com terra têm importante papel na história da arquitetura e, portanto, na história da técnica das construções no Brasil. Mais ainda, essa arquitetura, que gerou importantes monumentos, tem grande valor para a memória do povo brasileiro e, mesmo hoje, faz parte da cultura construtiva em alguns lugares do Brasil.

Fig.2– Sitio de Santo Antônio, São Roque (SP). Séc. XVII. www.guiasaoroque.com.br

Fig.2– Sitio de Santo Antônio, São Roque (SP). Séc. XVII. (fonte: www.guiasaoroque.com.br)

Taipa de pilão

Arquitetura e construção com terra é o termo empregado para designar toda edificação em que o solo é o principal material da obra. Para fazer uma construção com terra, o solo deve ser estabilizado com materiais aglomerantes e/ou por meio de esforços físicos.  É importante esclarecer que estabilização de solos é uma denominação geral, que pode ser usada por diversas áreas da ciência e terá um sentido específico em cada uma delas. No caso da arquitetura e construção com terra, estabilização de solos significa melhorar os parâmetros de engenharia, principalmente a resistência e a durabilidade do material.

Existem diversos sistemas construtivos que usam solo estabilizado como material de construção. No Brasil, ao longo de toda sua história, os sistemas construtivos com terra mais usados são adobe, taipa de mão ou pau a pique e taipa de pilão. O uso de cada sistema está diretamente ligado ao tipo de solo disponível e à cultura construtiva de cada região. Contudo, qualquer que seja a tipologia da edificação em terra, a característica comum é o uso do solo como o principal material de construção.

A taipa de pilão ou simplesmente “taipa” é um sistema em que a terra é estabilizada por compactação e, na maioria das vezes, com acréscimo de algum aglomerante que melhore as características do material compactado. O processo consiste em peneirar a porção necessária de solo, secá-lo ao ar e misturar, se for o caso, com o aglomerante. Acrescenta-se água à mistura até o ponto ótimo de umidade, coloca-se essa mistura dentro de uma forma reforçada e travada para, finalmente, compactar até a densidade ideal, usando pilões manuais ou, atualmente, compactadores mecânicos.

Fig.3 – Sistema de fôrmas treliçadas da TAIPAL Construções em Terra. Paço Imperial (RJ) (fonte: elaborada pelo autor, 2016).

Fig.3 – Sistema de fôrmas treliçadas da TAIPAL Construções em Terra. Paço Imperial – RJ (fonte: elaborada pelo autor, 2016).

Descrito de maneira sucinta como feito acima, o taipamento [4] parece procedimento simples, mas não é. Para alcançar a melhor qualidade numa estrutura de taipa, é necessário conhecer o solo usado, os materiais aglomerantes e suas reações com o solo, o traço, a fôrma e o processo de compactação que será empregado. Antes de construir, é necessário analisar as características físicas e químicas do solo, pois elas irão determinar a necessidade de uma correção da curva granulométrica. É preciso saber determinar o tipo e a quantidade do material aglomerante que será usado na estabilização segundo a composição mineralógica do solo. A fôrma, chamada taipal, deve ser altamente resistente, leve e de fácil desmontagem, para que possa ser desmontada sem pancadas ou grandes esforços. Na compactação, deve ser controlada não apenas a umidade, mas também a carga, para que se atinja a compacidade ideal sem danificar a camada anterior da taipa nem sobrecarregar a fôrma. Esses cuidados melhoram a qualidade do elemento construído e aumentam seu desempenho [5].

No restauro, o conhecimento sobre o sistema construtivo, sobre o solo utilizado e sobre o traço com o qual foi feita a mistura precisa ser ainda maior. É indispensável estudar os agentes e as causas do processo de degradação antes de qualquer medida restaurativa. Somente assim, independentemente da escola de restauro adotada no projeto, é que se poderá chegar a bons resultados. Uma ação irresponsável, devido à particularidade da terra, pode causar danos irreparáveis ao monumento.

Desenvolvimento da técnica

No Brasil muito já foi estudado sobre arquitetura e construção com terra [6], mas pouco desses estudos foram aplicados ao restauro de monumentos em taipa de pilão. Na cidade histórica de São Luiz do Paraitinga, por exemplo, que possui diversos edifícios em taipa, as obras para recuperação da Capela Nossa Senhora das Mercês, assim como da Igreja Matriz, patrimônios arruinados após a inundação de 2010, foram realizadas com sistemas de concreto e alvenaria. Ainda que tenham sanado a apreensão original e conquistado a aprovação da população, tais obras pouco fizeram pelo restauro da cultura construtiva de terra.

Os primeiros trabalhos coordenados por Luis Saia, Mario de Andrade e Lucio Costa no período de formação do IPHAN, também usaram o concreto armado como reforço para as estruturas de taipa. É evidente que esse procedimento foi adotado naquele momento histórico devido à ausência de maiores estudos sobre esse sistema construtivo. De maneira alguma, podemos desmerecer o importantíssimo trabalho feito por esses ilustres personagens da história da preservação do patrimônio arquitetônico brasileiro [7], mas adotar as mesmas práticas hoje, com o conhecimento que dispomos sobre toda sorte de técnicas e materiais atuais, é totalmente inadequado.

Foram feitos diversos estudos sobre a preservação e restauração de arquiteturas de terra em centros de excelência [8]. A maior parte desses trabalhos pesquisou materiais que bem aglutinassem as partículas do solo e dessem nova coesão às paredes deterioradas. Entre os produtos pesquisados, chamados consolidantes, destaca-se o silicato de etila. Entretanto, nunca é demais lembrar que o principal agente estabilizador das estruturas de taipa é o processo de compactação feito dentro da fôrma, sempre no sentido da altura do elemento.

No Brasil, grande parte das patologias dos monumentos em terra é causada pela ação da água. Por essa razão, é comum as paredes de taipa terem as bases – entre 20 cm e 1m de altura – adelgaçadas pela perda de material. Hoje ainda é problemático realizar a recuperação das estruturas que estão nessa condição, apesar dos novos conhecimentos e possibilidades técnicas. Fica então claro o motivo que levou Saia e seus companheiros a proporem o preenchimento dessa lacuna com concreto.

Mesmo que a perda de material seja pequena, não basta consolidar apenas a superfície. Em muitos casos é preciso completar vários centímetros da espessura do elemento. No entanto, devido à geometria da patologia, é impossível fazer esse trabalho na mesma direção das camadas compactadas. Portanto, mesmo quando o material é compactado na horizontal – ou seja, no sentido perpendicular às camadas originais – há uma diferença de trabalhabilidade devido à isotropia transversal da taipa.

Fig.4 – Ensaio com ultrassom no LabEND/FEAGRI/UNICAMP (fonte: elaborada pelo autor, 2016).

Fig.4 – Ensaio com ultrassom no LabEND/FEAGRI/UNICAMP (fonte: elaborada pelo autor, 2016).

É consenso que a análise da situação deve ser feita antes de qualquer medida restaurativa. No caso de elemento estrutural, é preciso verificar, principalmente, tensão admissível. Foram feitos diversos ensaios com o uso de ultrassom na tentativa de medir a resistência à compressão e o módulo de elasticidade do material por meio da velocidade das ondas ultrassônicas. Entretanto, apesar da alta correlação desses parâmetros e a velocidade das ondas ultrassônicas, é difícil prevê-los com razoável precisão. Alguns centros de pesquisa têm chegado a bons resultados fazendo uma série de ensaios não destrutivos e cruzando os resultados. Todavia, devido ao alto custo e complexidade dos equipamentos, tais técnicas não são usadas no Brasil.

Em ações restaurativas feitas mais recentemente foi colocado em teste o jateamento de alta pressão com solos estabilizados, com adição de maiores quantidades de aglomerante e de plastificantes. Existem, também, alguns trabalhos com o uso de geopolímeros. No entanto, ainda não há consenso sobre essas técnicas. De qualquer modo, é clara a importância da aplicação de conhecimento científico, de técnicas atuais, do trabalho conjunto de profissionais com diferentes saberes e da análise crítica sobre os trabalhos feitos anteriormente. Essa ação conjunta pode, e em muito, contribuir para a melhoria da construção de novos espaços e, principalmente, para a preservação dos monumentos em terra.


Notas

[1] André Heise trata o tema da produção serial e do controle de qualidade nas etapas da obra de painéis de taipa de pilão. Em: HEISE, André Falleiros. Desenho do processo e qualidade da produção do painel monolítico de solo cimento em taipa de pilão. Dissertação de Mestrado. Campinas: Faculdade de Engenharia Civil, Universidade Estadual de Campinas, 2004.Com relação ao uso contemporâneo das taipas, as pesquisadoras Andrea NaguissaYuba e Ana Paula Milani, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, vêm desenvolvendo diversas pesquisas na área de inovação de técnicas construtivas de terra, como nos trabalhos: MILANI, A. P. S.; YUBA, A. N. ; VERALDO, A. C.; PAZ, J. G. S. Análise do processo de produção de paredes monolíticas de solo estabilizado a partir do uso de mecanização. In: Anais do Congresso Brasileiro de Engenharia Agrícola. Campo Grande, 2014; VERALDO, A. C.; PAZ, J. G. S.; YUBA, A. N.; MILANI, A. P. da S. Análise do processo de produção de paredes monolíticas de solo estabilizado a partir do uso de mecanização. In: Anais do Congresso de Arquitetura e Construção com Terra no Brasil. Viçosa, 2014.

[2] <http://www.surtierraarquitectura.cl/>Acesso em 15/04/2017.

[3] FONT, Juana. “Pactando Conceptos”.Boletín 49-50, Artículos. Julio-Diciembre 2016, p.26. Disponível em: <www.redproterra.org> Acesso em 15/04/2017.Juana Font é historiadora da Fundación Font de Bedoya, Espanha:<www.fundacionantoniofontdebedoya.es>e pesquisadora da REDPROTERRA, Rede Ibero-Americana de Arquitetura e Construção com Terra:<www.redproterra.org>Acesso em 15/04/2017.

[4] Ato de construir com taipa.

[5] Cf.: HEISE A.F., MINTO F.C., HOFFMANN M.V. Proposta de contribuição para análise do desempenho técnico construtivo das paredes de taipa de pilão. In: Anais do Congresso de Arquitetura e Construção com Terra no Brasil. Fortaleza (CE), 2012.

[6] Grande parte das pesquisas recentes sobre o desenvolvimento das técnicas em terra pode ser encontrada nos anais dos congressos bienais da REDPROTERRA e da Rede Terra Brasil. A REDPROTERRA é uma rede de pesquisa ibero-americana que promove congressos anuais, denominados SIACOTS (Seminario Iberoamericano de Arquitectura y Construcción con Tierra). A Rede Terra Brasil promove congressos bienais que ocorrem desde 2006. A última edição aconteceu em 2016, na FAAC-UNESP, em Bauru. A próxima edição deverá ocorrer na FAU-UFRJ, em 2018.

[7] A Dra. Lia Mayumi* faz uma bela descrição e uma profunda análise dos processos de restauro das casas bandeiristas em seu livro: Taipa, canela preta e concreto: estudo sobre o restauro de casas bandeiristas. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2008.

[8] Alguns centros de pesquisa que se destacam na área da arquitetura e construção com terra são: Laboratório de construções experimentais da Universidade de Kassel, Alemanha; o CRATerre em Grenoble, França; Departamento de Engenheira da Pontifícia Universidade Católica do Perú (PUCP); Faculdade de engenharia da Universidade do Porto, Portugal; entre outros.

* Sugerimos a leitura do artigo “Resgatar das ruínas: a casa bandeirista do Itaim Bibi”, de Lia Mayumi, publicado na edição inaugural da Revista Restauro [Nota das Editoras].


Marcio V. Hoffmann é arquiteto e urbanista com Mestrado em Preservação e Restauração de Patrimônios Históricos. É professor da FAU ASSER, em Rio Claro, da Escola de Engenharia de Piracicaba e do Curso de Especialização em Restauro da Universidade Católica de Santos. É sócio fundador da Associação Brasileira dos Construtores em Terra (ABCTerra), membro do Projeto Ibero-americano de Investigação sobre Construção em Terra (PROTERRA) e ex-coordenador e atual conselheiro da Rede Terra Brasil. É sócio proprietário da empresa TAIPAL –Construções em Terra (FATO Arquitetura Ltda).


logo_rr_pp      EDIÇÃO n.1 2017           

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