A Reconstrução no centro das atenções: ensaio entre fronteiras epistemológicas
| Carolina Fidalgo de Oliveira e João Mascarenhas Mateus |
Este artigo pretende fazer uma primeira leitura do conceito de Reconstrução Arquitetônica numa aproximação epistemológica à área de conhecimento da Medicina. Nas ciências médicas, os termos “reconstrução” e “cirurgia reconstrutiva” referem-se a práticas que possibilitam a melhoria da qualidade de vida dos seres humanos. No contexto da Conservação e Preservação de Monumentos, os objetivos do termo Reconstrução ensejam narrativa semelhante, porém o seu significado carece de uma análise dos limites e dos motivos que mobiliza. [1]
O termo no contexto da Conservação e Preservação do Patrimônio
Em determinados contextos sociais e culturais, o termo Reconstrução ganha ou perde importância conforme se modificam os interesses e as necessidades em torno de atividades tão distintas como as associadas à Arquitetura e à Medicina, fazendo com que, às vezes, ele deixe de ser problematizado e questionado.
Mais particularmente no campo da Conservação e do Restauro, a Reconstrução pode ser aplicada, desde que problematizada e tendo em conta o estudo histórico-crítico dos monumentos. A Reconstrução é uma das ações possíveis entre tantas outras, como Restauração, Requalificação, Reabilitação, Conservação, Manutenção, Reciclagem e assim por diante. Esse vasto e complexo repertório léxico alude a práticas metodológicas variadas dirigidas à satisfação de objetivos diversos.
Nessa perspectiva, Ascención Hernández Martinez [2] chama a atenção para o fato de o termo Restauro (ou Restauração) ser evitado com frequência hoje em dia, uma vez que sua escolha como método teórico e operacional pressupõe, entre outras medidas, a ação cultural como finalidade primeira; enquanto que outras práticas parecem permitir uma maior flexibilização projetual, como no caso da Reconstrução. Porém, se adotada de forma irresponsável – tal como em determinadas intervenções médicas de cirurgia –, a Reconstrução pode levar a resultados equivocados, comprometendo os significados e os valores do objeto (ou do paciente) que se pretende salvaguardar.
Cada vez mais sugerida como metodologia de intervenção em objetos e sítios de valor cultural, com a finalidade de conservar e preservar – mas, em raras situações contextualizada ou problematizada –, a Reconstrução está na ordem do dia. Em 15 de abril de 2019, poucas horas depois de o mundo ter visto arder a Catedral de Notre-Dame em Paris ou mesmo após se ter assistido, alguns pares de meses antes, no dia 2 de setembro de 2018, ao colapso do edifício do Museu Nacional no Rio de Janeiro, voltou-se a falar de Reconstrução. No rescaldo de perdas devastadoras fala-se em reconstruir monumentos, porque em geral ninguém fica tranquilo diante de ruínas recentes. A escolha desta prática parece resultar, num passe de mágicas, na eliminação da catástrofe, pressupondo o seu esquecimento. Além do mais, “a ruína antiga já tem um status patrimonial. Quando é atual, em vias de se transformar sob nossos olhos, dá ideia de abandono, de degradação, é um testemunho da incapacidade de preservar” [3].
Por outro lado, a prática da Reconstrução em cenários pós-bélicos vem assumindo cada vez mais legitimidade. Para isso tem contribuído a inclusão de cidades ou monumentos reconstruídos nas Listas do Patrimônio Mundial da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), como o emblemático caso de Varsóvia (Polônia) após a Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, em função de consecutivos desastres naturais (terremotos) no Nepal e na Itália, e de guerras na Iugoslávia, Iêmen, Iraque ou Síria, o próprio Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) vem dando mais atenção ao tema. Além de flexibilizar o assunto em seu sítio eletrônico [4] por meio de documentos e papers, membros dessa organização internacional se reuniram, em 2016, e elaboraram diretrizes para a recuperação de Patrimônios Mundiais que passam por situações traumáticas, dando origem a um guia denominado “Post Trauma Recovery and Reconstruction for World Heritage Cultural Properties” [5], cuja etimologia encontra as suas raízes recentes na Medicina.
Para além disso, são cada vez mais frequentes as operações imobiliárias baseadas em reproduções ou reconstruções totais de edifícios, motivadas por interesses econômicos e sociais diversos, e iniciadas com o pretexto de debelarem “problemas clínicos” de manutenção periódica. Para incrementar a atividade do setor turístico, tem-se promovido a “musealização” de inúmeros centros históricos através da reprodução de formas e estilos do passado, capazes de produzir uma imagem facilmente “consumível” e socialmente aceita por grupos socioculturais [6] potencialmente promissores do ponto de vista econômico. Em algumas situações, em que as ruínas são provocadas por abandono sistemático ou por desastres naturais, também se opta pela reconstrução, com a finalidade de satisfazer discursos de poder que mobilizam valores e fortalecem campos simbólicos, como o que ocorreu na cidade de Goiás (GO), ao longo da segunda metade do século passado [7]. E também porque essa prática fortalece uma ideia de autenticidade, sustentada na concepção de originalidade da forma e da matéria. Da noção de que o monumento deve conservar a sua materialidade – ou a materialidade tal como chega a nossos dias, como bem define a Carta de Veneza (1964) –, passa-se à ideia de conservar a imagem do objeto em seu estado original, sem se atentar às questões materiais, às técnicas construtivas, à integridade e à história do objeto.
Para obviar as consequências negativas desses tipos de atitudes comuns no mundo ocidental, desde o século XIX que a “exigência” de pensar a Conservação e o Restauro de monumentos com base no respeito pela sua materialidade foi sendo adotada para combater reconstituições “fantasiosas”. John Ruskin (1819-1900), defensor acérrimo do conceito de ruína, começou por manifestar a sua insatisfação com o afã de reconstituição de E.E. Viollet-le-Duc (1814-1879). Depois, Camillo Boito (1836-1914) chamou a atenção sobre os completamentos (ou adições) e defendeu que as intervenções deveriam se mostrar contemporâneas [8]. Seguiram-se teóricos como Alois Riegl (1858-1905), Cesare Brandi (1906-1988) e Raymond Lemaire (1921-1997), além de documentos patrimoniais que têm como base as reflexões colocadas por esses pensadores [9]. Na sua maioria, esses estudos passaram a defender a ideia de evitar que o monumento chegue ao estado de ruína e o carácter “distinguível” das intervenções, se necessárias, caracterizando-as como obras do seu tempo, sem as confundir com a obra antiga.
Todavia, anacronicamente, e voltando à questão inicial, nota-se que a Reconstrução vem se afirmando como prática da Reabilitação e chega a ser associada, em certos casos, como prática de Restauro. Tendo em consideração as discrepâncias atuais da utilização do conceito de Reconstrução, parece útil dirigir o nosso olhar para o campo de conhecimento das ciências médicas, onde os critérios de salvaguarda da espécie humana parecem ser mais claros e objetivos.
Caminhos epistemológicos distintos. Linguística e práxis semelhantes
A etimologia dos termos usados na prática da Preservação encontra suas raízes em contextos bem diversos da Arquitetura, como a História, a Estética, a Filosofia, a Construção, a Tecnologia. Para Ascención Hernández Martínez, “la terminología circula en un territorio transversal que implica muchas disciplinas, cayendo a menudo en la ambigüedad y la confusión, de ahí la necesidad, en primer lugar, de clarificar bien los términos, para luego entrar en los criterios, en los contenidos” [10].
Ao mesmo tempo, uma dada linguagem técnica reflete um saber teórico sobre determinado campo de conhecimento, a partir de uma determinada cultura e lugar. Foi também sempre possível constatar situações de convivência da linguagem especializada da literatura técnica com outros termos populares que podem extrapolar o academicismo [11]. Não é de hoje que, a partir de algumas metáforas e metonímias, os termos da medicina são associados ao repertório da arquitetura e do urbanismo e vice-versa. Do lado da medicina, empregam-se, em diferentes especialidades, termos como “estrutura” (óssea, molecular), “parede” (de vasos arteriais ou capilares) e “tabique” (nasal), só para mencionar alguns exemplos.
Essa permeabilidade linguística foi em parte explorada na primeira metade do século passado, com o progredir do Movimento Moderno, em particular, com a elaboração da Carta de Atenas (IV CIAM, 1933) [12], que tinha por tema a “cidade funcional”, como sugerido por Le Corbusier, e que culminou com a discussão do “coração da cidade”, em 1951, durante o VIII CIAM. Buscava-se, então, associar as funções da cidade às condições primordiais do corpo humano, evidenciando o funcionamento desses organismos. Também o termo “patologias” passou desde então a associar-se aos problemas da cidade ou às “doenças” que afetam as estruturas e as diferentes camadas das edificações, como fissuras, infiltrações, corrosões, rachaduras, entre outras. Parte destas discussões relacionavam-se com as necessidades psicológicas do ser humano, pois, segundo os últimos encontros dos CIAM, estas haviam sido esquecidas no processo modernizador racionalista [13].
Analogamente, em Dicionários e Cadernos de Arquitetura que tratam de terminologias relativas às fases construtivas de uma edificação e a determinados materiais, desde tempos remotos como os do Renascimento, é frequente encontrar vocábulos relacionados com a anatomia humana como campo semântico [14]. Na verdade, o axioma atribuído a Protágoras “do ‘homem como medida de todas coisas’ [que] reflete a utilização das proporções do corpo humano para unidades de medida” [15], constituiu uma práxis que perdurou muito tempo, só perdendo importância na Europa Ocidental, com a adoção do metro como unidade de medida. Sobretudo nos EUA, fala-se hoje de “forensic engineering” e de “architectural forensic” (engenharia e arquitetura forenses) para entender, tal como um médico legista, as alterações (mutilações) a que um edifício histórico é submetido desde a sua construção [16].
Essas são rápidas evocações. Não cabe neste curto ensaio esgotar as pontes lexicais existentes entre o corpo humano, as ciências relacionadas com a longevidade e a prática da construção e da conservação, tampouco proceder a uma detalhada análise etimológica e semântica. No entanto, é possível estabelecer algumas relações.
Para compreender o funcionamento do corpo humano (e nele intervir) é necessário conhecer muitas áreas e ramificações das ciências médicas, como a anatomia, a biologia, a fisiologia. A própria fisiologia – ramo da ciência humana que, grosso modo, estuda o funcionamento do organismo – é base para a compreensão de muitos dos subtemas vinculados à atuação nessa área. A partir da noção de fisiologia é possível buscar termos basilares que tratam de intervenções, reparações e cirurgias, bem como entender a ideia de “recompor” e suas finalidades básicas, procurando tecer uma primeira aproximação lexical – a partir de alguns dicionários de terminologias de medicina [17] – entre os campos de conhecimento das Ciências Médicas e a atividade da Preservação Arquitetônica.
Começando pelo termo Cirurgia, é possível constatar a sua correspondência com o domínio das intervenções físicas sobre o corpo humano por meio de uma atividade manual, sendo todas as suas práticas consideradas procedimentos invasivos, em maior ou menor grau. O que se costuma chamar “noninvasive surgery”, usualmente se refere a uma incisão que não invade ou modifica a estrutura da camada externa (frequentemente a pele), tratando-se, em geral, de procedimentos com laser ou de radioterapias. No entanto, não se pode afirmar que esses métodos não sejam minimamente invasivos.
De forma semelhante, no restauro arquitetônico, Cesare Brandi [18] tinha aprofundado a noção de “mínima intervenção”, anunciada décadas antes por Camillo Boito [19], no sentido de que esta prática não pode desnaturar o documento histórico ou a obra de arte como imagem figurada. Ou seja, qualquer intervenção numa obra de arte implica sempre alterações (por muito pequenas ou pouco perceptíveis que elas sejam), assim como na medicina, onde, na prática, não há procedimento não invasivo. Na arquitetura, mesmo que uma reparação não contemple os revestimentos (o que seria a pele, para a medicina), as intervenções necessárias para atingir os “ossos” e a “carne” – no caso das alvenarias, as nervuras dos arcos e enchimentos de blocos rígidos e argamassas e, no caso do concreto armado, o reticulado de pilares, vigas e lajes e os enchimentos de alvenarias ou painéis pré-fabricados – das arquiteturas históricas resultam em destruições (ainda que mínimas). Daí o cuidado em evitar alterar a consistência física e formal dos corpos arquitetônicos, buscando uma integração “natural” e “fisiológica” entre antigo e novo. Por essa razão, as decisões devem resultar de um judicioso processo histórico e crítico. Apesar de qualquer intervenção implicar alterações, isso não deve significar cancelar camadas e gestos históricos e estéticos, impondo, num determinado objeto ou no espaço, uma nova história [20].
Se analisarmos agora o conceito de Cirurgia Plástica, é possível compreender como ele define as ações de esculpir ou remodelar, tendo origem no grego πλαστική (τέχνη), plastikē (tekhnē). Chama a atenção a raiz semântica – tekhnē (técnica) – um termo geralmente relacionado com as artes e as práticas manuais, que tem como base o saber-fazer e as implicações materiais de um determinado campo de conhecimento em sentido mais amplo. Na verdade, a ideia de “plástica” surgiu na primeira metade do século XIX, para se referir à formação ou à modelagem da matéria [21]. Ou seja, a noção de cirurgia plástica como uma especialidade médica nasce da necessidade, em certas patologias clínicas, de reconstruir ou modelar, alterando o corpo humano com o objetivo de recuperar uma função ou de restabelecer uma determinada condição estética. A cirurgia plástica pode ser dividida em duas categorias. A primeira é a cirurgia plástica reconstrutiva que abrange uma variedade muito ampla e inclui desde cirurgia craniofacial até microcirurgias e tratamentos de queimaduras. A outra é a cirurgia plástica cosmética ou estética. Enquanto a primeira categoria se propõe reconstruir uma parte do corpo ou melhorar o seu funcionamento, a cirurgia estética visa melhorar apenas a aparência. A cirurgia plástica reconstrutiva, para além de restaurar a função e a aparência consideradas normais, é utilizada para corrigir problemas criados por defeitos congênitos, traumas ou outras doenças degenerativas, incluindo o câncer. Cabe salientar que alguns procedimentos de cirurgias reconstrutivas requerem uma grande intrusividade para acessar a área de interesse, não pretendendo, na sua essência, priorizar a aparência (esta surge como consequência ou objetivo secundário).
Se desejarmos confrontar esta atividade médica com o campo da arquitetura, esta distinção de intervenções parece menos clara. Com efeito, muito do que é reconstruído tem por objetivo prioritário a recuperação de uma condição estética que teria existido no passado. Claro que, ao fim e ao cabo, é possível também recuperar o uso e as funções do edifício. No entanto, infelizmente, são frequentes os casos em que se acaba por impor ao objeto um uso pouco compatível com as suas capacidades materiais.
Já o termo Prótese, vem do grego antigo (πρόσθεση) prósthesis e significa adição, aplicação, acessório, referindo-se a um componente artificial que tem por finalidade suprir necessidades e funções de indivíduos mutilados por amputações, traumas ou deficiências físicas de nascença. Assim, quando uma pessoa perde algum membro do corpo, em seu lugar pode ser colocada uma peça mecânica que responde ao impulso nervoso anteriormente existente. As próteses podem ser internas, para substituição de articulações ósseas, por exemplo, ou externas, para suprir um membro e assegurar funções e movimentos. Também podem ter finalidade estética pela integração no conjunto, complementando um membro ou uma parte do organismo.
No campo da arquitetura, as próteses podem ser comparadas, em alguns casos, às adições ou à reconstrução de determinados elementos arquitetônicos para restabelecer uma determinada função da qual existe evidência histórica, mas que se perdeu no tempo, ou de preencher lacunas que impedem leituras de conjunto. No campo da anastilose de construções da Antiguidade Clássica, por exemplo, é prática comum a utilização de pernos e estruturas metálicas de sustentação ao serviço da reconstrução. Por seu lado, as adições referem-se a “qualquer” modificação “imposta” às obras de arte, seja pela ação do tempo – que pode alterar a imagem de um objeto pelo desgaste do material ou pelo acúmulo de sujeira –, seja pela intervenção do homem, que ocasiona modificações com a inserção de novos elementos funcionais ou decorativos. A remoção ou não de uma adição num procedimento de intervenção é uma das questões mais complexas no restauro arquitetônico e apreende o problema da autenticidade. Como aprofundado por Giovannoni [22] e Brandi [23], a remoção de uma adição pode ocasionar um falso histórico, pois se elimina uma passagem da obra no tempo. Por outro lado, determinadas adições, se mantidas, podem prejudicar a fruição estética, mas ainda assim, permitir a sobrevivência das obras de arte.
Prática, mas controversa
Enquanto conflitos, abandono ou práticas inadequadas de manutenção continuam a provocar a deterioração dos sítios considerados patrimônios culturais, a Reconstrução permanece um tópico crítico de discussão. Recuperar, reabilitar e reconstruir sítios danificados são questões complexas.
As decisões da Unesco têm sido orientadas, desde 1977, pela Carta de Veneza (1964), sendo a autenticidade assumida como um critério para aceitar ou não um bem cultural nas Listas do Patrimônio Mundial. No entanto, pouco a pouco, mas de forma constante, a noção de autenticidade colocada pela Carta de Veneza – que pressupõe respeitar a obra de arte do ponto de vista histórico e estético na contemporaneidade – vem sendo corroída. Sempre com maior frequência são deixados de lado questionamentos fundamentais, como: 1. Mesmo que cópias precisas de prédios ou monumentos sejam possíveis, deve a reconstrução ser levada a cabo na ausência da matéria original?; 2. Na reconstrução deverão ser utilizadas as técnicas construtivas “supostamente” originais?; 3. Deve ser considerado o saber-fazer dos antigos construtores?; 4. Busca-se apenas a semelhança da imagem da obra que um dia teria existido e por quais motivos?
Para além dessas questões e tendo em mente a acepção proposta pela Medicina dos termos analisados, indaga-se até onde as reconstruções na arquitetura devem ir. Na Medicina, procura-se que a utilização de uma prótese, por exemplo, seja compatível com o corpo que o sustenta. Busca-se, antes de qualquer ação mais invasiva como as cirurgias, certificar-se de que outros tratamentos possíveis e menos intrusivos já tenham sido avaliados. Na verdade, o objetivo de qualquer intervenção deve ser o de assegurar a vida do paciente, respeitando não apenas sua integridade física e psicológica, como também suas limitações. Em linhas gerais, sabe-se que algumas doenças são completamente curáveis, outras persistirão de forma crônica. Porém, sintomas podem ser controlados por meio de tratamentos preventivos, observando-se a capacidade de reação do paciente. Algo semelhante deve perpassar as estruturas arquitetônicas consideradas patrimônios [24]. À semelhança da medicina humana, a metodologia de intervenção nas edificações, que apresentam grandes ou pequenas patologias, deve levar em conta alguns critérios e, em alguns casos, reconstruções devem ser evitadas e em seu lugar deve-se priorizar a o restauro preventivo [25]. O abuso de cirurgias plásticas ou a reconstrução total de tecidos (revestimentos) ou mesmo ossos (estruturas arquitetônicas) para mascarar ou tentar reverter a ação do tempo é em geral equivocada e leva ao falso julgamento do pertencimento de um corpo ou objeto em determinado tempo e lugar. As rugas e as manchas são sinais da idade e do carácter do artefato e muitas vezes devem ser mantidas, tomando-se o cuidado de realizar manutenções adequadas ao longo do tempo.
Ainda que careça de aprofundamentos, deve-se considerar que, na Reconstrução Plástica Médica, os critérios de Legibilidade e Reversibilidade não são aplicados com a mesma finalidade na Arquitetura. A Reversibilidade de uma prótese médica deve ser avaliada do ponto de vista funcional e a partir da efemeridade do corpo humano. Na arquitetura pretende-se “a definitum”, como já acenado, transmitir as marcas do tempo às gerações vindouras, uma vez que o Monumento é registro contínuo da História.
Todas as questões que acabam de ser levantadas parecem ser úteis ao aprofundamento do conceito de Reconstrução, explorando um campo epistemológico distinto, mas com muitas afinidades linguísticas e operativas como é o campo da Medicina. Critérios e metodologias de reconstrução na preservação do patrimônio arquitetônico e do gênero humano coincidem em grande parte e informam-se entre si. Ao fim e ao cabo, em ambas, é a salvaguarda da Humanidade que está em jogo.
Arquiteta e urbanista (2003) pela UNESP; mestre (2009) e doutora (2016) pela FAUUSP e investigadora colaboradora no CIAUD (Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design) da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, onde também desenvolve pós-doutorado. E-mail: carolina.oiiveria@edu.ulisboa.pt
João Mascarenhas Mateus
Historiador da construção e conservador do patrimônio arquitetônico. Engenheiro Civil pelo IST-Ulisboa (1987), mestre pela KULeuven-Bélgica (1992), doutor pelo IST-ULisboa (2001). Investigador Principal FCT no CIAUD (Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design) da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. E-mail: joao.m.mateus@fa.ulisboa.pt
v.3, n.6 (2019)
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