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A diversidade dos conjuntos ferroviários brasileiros e a importância de sua preservação

| Antonio Soukef Júnior |

Em 1830, com a abertura da linha férrea que ligava as cidades de Liverpool e Manchester, na Inglaterra, inaugura-se um novo período na história mundial, a era ferroviária. Consequência direta da Revolução Industrial, essa inovação nos meios de transportes terrestres acarreta mudanças socioeconômicas e sociais profundas.

Em pouco mais de meio século, as ferrovias expandem-se para várias localidades em todos os continentes. Capitais britânicos e, a seguir, capitais franceses, alemães e norte-americanos financiam governos e grupos privados interessados em implantar caminhos de ferro, possibilitando a criação de uma rede de circulação que amplia a exportação de bens produzidos pelas potências industrializadas, ao mesmo tempo em que facilita a importação, por parte destas, de matérias-primas ou produtos primários produzidos nos países periféricos.

No caso do Brasil, a malha ferroviária seguiu, basicamente, esse modelo, sendo construída em áreas onde se cultivava a borracha, o algodão, o açúcar e, especialmente, o café, principal produto exportado entre a década de 1850 e a Primeira República. Ao possibilitar a criação de uma extensa rede de comunicação, a ferrovia promoverá sensíveis mudanças, alterando geografias, permitindo a circulação de pessoas, riquezas materiais e tornando possível a fundação ou o desenvolvimento de várias cidades por todo o país.

Inicialmente, todo o material necessário para a montagem dessa infraestrutura – trilhos, peças, maquinário, locomotivas, carros e vagões de carga, entre outros engenhos –, são importados de países como a Bélgica, França, Alemanha e, principalmente, da Grã-Bretanha. A instalação deste aparato inédito, do qual faziam parte viadutos, pontes metálicas, torres de sinalização e cancelas, torna-se símbolo de modernidade, cortando plantações, vencendo vales, perfurando morros e cruzando rios. Surgem novas paisagens que modificam de forma indelével os espaços rurais e urbanos.

Ao integrar locais afastados, a ferrovia instaura um novo ritmo no cotidiano, promovendo a diversificação de atividades e introduzindo novos hábitos de consumo. A chegada do trem é aguardada com expectativa pela população, pois prenunciava a vinda ou a partida de amigos, familiares e forasteiros e o recebimento de cartas, encomendas e objetos vindos de qualquer parte do mundo. Essa sensação de se estar conectado de modo rápido com lugares longínquos muda em definitivo a percepção do tempo, dando às pessoas uma sensação de pertencerem a uma nova época, onde velocidade significava progresso.

As edificações ferroviárias

Basicamente, os conjuntos ferroviários eram compostos por armazéns de carga e mercadorias, oficinas de manutenção, local para manobra de composições, caixas d’água suspensas para abastecimento das caldeiras das locomotivas, depósito de carvão [1], casas para funcionários, abrigos para máquinas paradas, além de outras edificações [2]. Inicialmente importadas, essas edificações, com o aprimoramento das ferrovias e a rapidez com que avançavam interior adentro, passam a ser projetadas por profissionais contratados ou oriundos dos quadros funcionais das próprias empresas.

Os prédios que mais chamavam a atenção eram os abrigos circulares para máquinas paradas, as chamadas rotundas. Alguns deles, ainda hoje, marcam a paisagem de Barra do Piraí, no Rio de Janeiro; São João Del Rey, em Minas Gerais; e Cruzeiro, em São Paulo.

Todavia, são as estações as construções mais representativas de todo o conjunto arquitetônico ferroviário, pelo fato de ligarem a via férrea com as respectivas aglomerações. Pelo seu caráter articulador, muitas delas tornaram-se marcos referencias, aglutinando ao seu redor importantes serviços. Isso pode ser constatado ao se verificar o número de edificações que, construídas em locais isolados, em pouco tempo eram envolvidas pelo tecido urbano.

Junto à estação localizava-se a plataforma para embarque e desembarque de passageiros e mercadorias. Sua altura elevada em relação ao nível do terreno permitia o perfeito acesso aos trens. Geralmente, essa área possuía uma grande cobertura em ferro para proteção contra as intempéries.

O ferro, desde o início do século XIX, com a queda do custo para sua produção, teve seu uso disseminado na Europa e nos Estados Unidos, sendo utilizado para os mais diversos fins, tanto encoberto com alvenarias de tijolos ou pedra, quanto de forma aparente, em pontes, viadutos e elementos estruturais como pilares e vigas. As diversas possibilidades de aplicação na construção civil criarão um expressivo mercado de comercialização de peças metálicas e, até mesmo, de edifícios inteiramente pré-fabricados, largamente exportados para os países não industrializados.

No Brasil, no início do século XX, cidades que passam por um rápido processo de crescimento, como Manaus, Belém, Recife e Fortaleza, vão importar diversas edificações metálicas. Apesar disso, são as ferrovias, por meio de suas construções, quem melhor vão divulgar a chamada arquitetura do ferro.

Desde o início das atividades ferroviárias na Europa, a forma das estações foi determinada pelos seguintes fatores: pela plataforma de embarque e desembarque, por sua disposição em relação às linhas férreas e pela edificação que concentrava os serviços necessários ao funcionamento dos trens e ao atendimento dos passageiros.

Por tudo que simbolizavam, as estações foram objeto de cuidadosos projetos que resultaram em obras que conciliavam as funções específicas de transporte com as exigências de conforto e praticidade. Já as demais edificações, pelas características gerais da operação ferroviária, eram encaradas como problema de engenharia e executadas como obras funcionais, isto é, privilegiando o caráter operacional em detrimento das questões estéticas vigentes.

Como exemplo desse fato pode-se citar a diferença de tratamento das coberturas das plataformas, executadas em ferro (com recobrimento em chapas metálicas ou de vidro) em relação ao prédio da estação, construído em alvenaria, e cuja concepção seguia as regras vigentes da arquitetura da época. Isto talvez seja resultado da importância que as estações adquiriram no contexto social e urbano do século XIX, fazendo com que recebessem, por parte dos arquitetos e construtores, as mesmas soluções empregadas nos edifícios públicos e religiosos importantes onde predominava o chamado Ecletismo, estilo que sobrepunha vários elementos pinçados de outros períodos da história da arquitetura, de modo a formar novos arranjos arquitetônicos, nem sempre harmoniosos. Assim vê-se, de um lado, a utilização de uma estrutura arrojada, que incorporava todo o avanço tecnológico que os novos materiais permitiam e, de outro, a utilização de técnicas construtivas ainda presas a preceitos estéticos convencionais.

No Brasil, essa dualidade também é verificada, uma vez que, no início das operações ferroviárias, como mencionado, as edificações seguiam projetos desenvolvidos no exterior, sendo executadas com materiais importados. A diferença é que os protótipos utilizados não tinham similar no panorama arquitetônico nacional, adquirindo, por isso, importância significativa pela introdução de novas técnicas construtivas. Por esse motivo, tornam-se referências extremamente importantes para o desenvolvimento da tecnologia da construção no país.

Como resultado tem-se uma gama enorme de prédios que apresentam as mais variadas composições. Muitos deles sobreviveram ao fim dos serviços ferroviários e hoje, acolhendo novas funções, constituem o patrimônio cultural de várias cidades.

Como exemplo, destacam-se o conjunto ferroviário remanescente da Estrada de Ferro Oeste de Minas, em São João Del Rey, reconvertido em Museu Ferroviário; a estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, em Belo Horizonte, que depois de restaurada foi transformada em Museu de Artes e Ofícios; a Estação Julio Prestes, em São Paulo, que se tornou sede da Orquestra Sinfônica do Estado e a Estação Central de Recife, que abriga hoje um museu ferroviário.

Do ponto de vista da classificação, as estações podem ser agrupadas de diferentes maneiras [3]. A mais comum é aquela que divide as edificações segundo o trajeto da linha férrea. Nesse caso, há três situações distintas: as estações de passagem (ou intermediárias) que se localizavam ao longo do percurso; as estações terminais, onde se iniciavam ou terminavam as viagens de trens; e as estações de transferências ou entroncamento, onde os usuários podiam trocar de percurso. Cada uma delas tinha uma conformação que seguia modelos pré-definidos, que se adequavam à configuração da linha férrea.

Observadas essas condições, cada edifício recebia os serviços e o acabamento de acordo com o porte e a importância da localidade para as companhias ferroviárias. Algumas delas, por exemplo, padronizavam as formas e os materiais utilizados. É o caso da São Paulo Railway Company, que, entre 1856 e 1946, foi detentora da linha que fazia a ligação entre as cidades de Santos e Jundiaí no interior de São Paulo. O corpo principal de suas edificações formava um bloco retangular com acabamento em alvenaria de tijolos aparentes, quase sem nenhuma ornamentação.

Já nas edificações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, a gare metálica se distinguia do bloco de alvenaria que, por sua vez, recebia um tratamento arquitetônico distinto, tanto em tamanho quanto em requinte, de acordo com a significância que a cidade tinha dentro da logística da empresa.

Dentro da classificação por localização, as estações ainda eram separadas por seu tamanho, podendo ser de grande, médio e pequeno porte. Abaixo desta última havia ainda as chamadas paradas rurais, simples plataformas cobertas onde o trem parava somente para recolher passageiros e / ou mercadorias.

De modo geral, as estações de pequeno e médio porte localizavam-se em cidades do interior, onde pequenos espaços eram suficientes para os serviços de operação. Entre as centenas de construções dessa categoria, ainda hoje encontradas, destacam-se, por sua importância histórica e cultural ou qualidade arquitetônica, as edificações de Porto Novo, Juiz de Fora e Barbacena, em Minas Gerais; Japeri, Barra do Piraí, Marechal Hermes e Guia de Pacobaíba [4], no Rio de Janeiro; Guaratinguetá, Rubião Junior, Barracão, Piracicaba, Mogi da Cruzes e Bananal, em São Paulo; e São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Essas duas últimas com características bastante peculiares, a primeira revestida por chapas de zinco sobre madeira e a segunda com chapas metálicas importadas da Bélgica.

As estações de grande porte, por sua vez, situavam-se nas capitais ou cidades de importância regional. Seus espaços conciliavam as funções de operação ferroviária e as de caráter administrativo, o que incluía a diretoria e os demais serviços da companhia férrea. Além das citadas Estação de Belo Horizonte, Estação Julio Prestes e Estação Central de Recife, destacam-se as estações Barão de Mauá, no Rio de Janeiro; João Felipe, em Fortaleza; e Central, em Curitiba. Nas cidades de importância regional chamam a atenção os exemplares existentes em Campinas e Cachoeira, ambas no interior de São Paulo.

Deve-se ressaltar que, durante o período áureo do transporte ferroviário, que se estende até o início da década de 1940, as diversas empresas reformaram ou substituíram totalmente as instalações ferroviárias originais, devido ao aumento das demandas. Surgem então novas e maiores oficinas, armazéns, depósitos e estações. Como exemplo, destacam-se a Estação da Luz, cujo prédio, inaugurado em 1901, foi a terceira versão da estação da São Paulo Railway em São Paulo; e o edifício Dom Pedro II, sede da Central do Brasil no Rio de Janeiro, edificado entre 1936 e 1943, em substituição à primitiva construção.

As vilas ferroviárias

As moradias para ferroviários surgem concomitantemente à implantação da malha ferroviária, com a finalidade de dar suporte ao funcionamento e à manutenção das linhas. A quantidade de residências era definida em função da complexidade dos serviços a serem realizados. Em locais mais simples, eram construídas pelo menos três habitações, chamadas de casas de turma, enquanto que nos entroncamentos e trechos mais movimentados, que exigiam a presença permanente de funcionários, eram implantados conjuntos maiores.

Dentre as diversas vilas ferroviárias construídas em todo o Brasil, destacam-se a vila de Santa Maria, no Rio Grande do Sul; a antiga vila Mayrink, no interior paulista; e a vila de Paranapiacaba, em Santo André, na região metropolitana de São Paulo.

Também chamada de vila Belga, o conjunto ferroviário de Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, foi construído entre 1901 e 1903 por iniciativa do engenheiro Gustavo Vauthier, diretor da Compagnie Auxiliare de Chemins de Fer au Brésil, empresa de capital belga que monopolizou o transporte ferroviário no estado entre 1898 e 1920.

Destinada a abrigar os ferroviários da companhia, a vila Belga foi construída em alvenaria, recebendo uma ornamentação com detalhes art nouveau. Suas oitenta e quatro residências foram agrupadas por tipologia, obedecendo a declividade do terreno e, na maioria dos casos, ocupando o lote de forma integral. As casas maiores eram destinadas a funcionários graduados. Por sua importância e para evitar descaracterizações, o conjunto foi declarado patrimônio cultural do estado em 1998.

No caso da vila Mayrink, tem-se uma situação bastante peculiar, pois, em 1881, a Estrada de Ferro Sorocabana comprou uma antiga propriedade rural localizada no quilômetro 74 de sua linha principal com o objetivo de construir um ramal até o litoral, que pudesse romper o monopólio exercido pela São Paulo Railway no acesso ao porto de Santos. Todavia, antes mesmo de serem iniciados os respectivos estudos, decide ocupar a fazenda com a criação de um horto florestal, uma oficina de manutenção de locomotivas, um depósito de material rodante e um pátio para manobras, além de moradias para os seus funcionários.

O futuro núcleo foi dotado de equipamentos e serviços pouco usuais na maioria das cidades da época, tais como, abastecimento de água, esgoto e iluminação. Com o nome de Canguera, a vila é fundada em 27 de novembro de 1890. Dois anos depois passa a se chamar Mayrink, em homenagem ao seu idealizador, o banqueiro e ex-presidente da empresa, Francisco de Paula Mayrink.

Em 1906, é construída a estação da vila, obra que também mereceu cuidados especiais, pois atendia duas linhas diferentes. Para projetá-la foi contratado o arquiteto Victor Dubugras, profissional conhecido pelo caráter experimental e diverso de seus projetos. Localizada no centro de duas vias férreas, como uma ilha, a estação de Mayrink ganhou um ambiente contínuo, simétrico e onde os acessos e serviços eram independentes, interligando-se por meio de uma passagem subterrânea.

Na realização da obra, Dubugras utilizou um sistema construtivo ainda não utilizado no país na construção de edifícios, o concreto armado. O resultado, extremamente original, fugiu dos modelos tradicionalmente usados nas edificações ferroviárias. Por sua implantação privilegiada tornou-se o ponto focal da vila.

Com o declínio dos transportes ferroviários depois da Segunda Guerra Mundial, e com a transferência das oficinas para Sorocaba, a vila entrou em declínio. Somente na década de 1950, com o desenvolvimento da agricultura, voltou a ter uma atividade econômica significativa. Em 1958 foi elevada à categoria de cidade passando a se chamar Mairinque. Hoje, a antiga vila corresponde ao centro da localidade e, apesar dos trens de carga atravessarem o local, as edificações do pátio praticamente não são mais utilizadas em funções ferroviárias.

As residências da antiga vila ainda mantém certa integridade, embora algumas mudanças de volumetria e gabarito já tenham alterado as relações espaciais originais. Por suas características únicas, a estação foi tombada pelo Estado e pela União. Lamentavelmente, essa proteção não se estendeu às demais edificações, o que coloca em risco a sobrevivência de um expressivo patrimônio industrial, utilizado por um grupo social específico, e que reflete um período de grandes mudanças socioeconômicas e que por isso merece ser preservado em sua totalidade.

Uma das mais antigas vilas ferroviárias do país, Paranapiacaba, teve sua origem associada à construção da São Paulo Railway. No núcleo inicial, chamado de vila Velha, por volta de 1860, são levantados alojamentos provisórios destinados a abrigar os operários que trabalhavam na obra. Na década de 1890, quando uma segunda linha férrea foi implantada, devido à complexidade dos novos equipamentos que auxiliavam na subida e descida da serra, tornou-se necessária a permanência de um número maior de funcionários, sendo então, necessária a construção de moradias definitivas. Os alojamentos primitivos são substituídos por edificações de madeira constituindo um núcleo, denominado vila Nova ou vila Martin Smith.

Simultaneamente ao crescimento da vila Velha, outra aglomeração, próxima ao núcleo ferroviário, crescia de forma espontânea, graças à doação de lotes, por parte do dono das terras, Bento José Rodrigues da Silva, para aqueles que se dispusessem a construir no local. Conhecido como Parte Alta, foi ocupada por moradores que não estavam necessariamente ligados às atividades da ferrovia. Sua implantação se deu por meio do escalonamento de um morro. A maior parte das construções era geminada e ocupava lotes estreitos e alinhados, que determinaram a formação de uma fachada contínua. A área contava ainda com uma igreja e um cemitério.

A vila Martin Smith, localizava-se perto da estação denominada Alto da Serra, posteriormente Paranapiacaba, e caracterizava-se por ter uma organização planejada segundo moldes europeus. As residências foram construídas em madeira sobre uma base de alvenaria, cuja função era minimizar os efeitos da forte umidade local, típica da Serra do Mar. A ocupação das casas repetia a hierarquia funcional da empresa, com os operários ocupando as construções mais simples, os técnicos as de nível médio e o engenheiro-chefe a principal edificação do conjunto e cuja localização permitia controlar todo o tráfego de trens, o movimento no pátio de manobras, nas oficinas e nas habitações.

Todas as casas da vila Nova possuíam recuos de frente, fundos e lateral, além de varandas cobertas. Os equipamentos urbanos também seguiam um projeto inovador, que incluíam passeios públicos, estrutura viária e um sistema de saneamento feito por meio de vielas sanitárias, que facilitavam o processo de conservação da higiene local.

Em 1946, com o fim do prazo de concessão de noventa anos dados à São Paulo Railway, a estrada de ferro foi encampada pela união. Em 1957, a vila, os equipamentos e a malha ferroviária passaram a integrar o patrimônio da recém-criada Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA. Esta edificou, então, casas de alvenaria para novos funcionários. Em 1974, um novo sistema operacional substituiu o antigo que era operado na linha primitiva, fato que contribuiu para a decadência da vila. O sistema utilizado na Serra Nova continuou em operação até 1981, quando também foi desativado. Nesse mesmo ano, um incêndio destruiu totalmente a estação de Paranapiacaba a exceção da torre do relógio.

A partir da década de 1980, apesar de algumas iniciativas da RFFSA visando à preservação da vila, os problemas de conservação do patrimônio imobiliário e o sucateamento dos equipamentos ferroviários, aceleram a decadência do conjunto. Em 1987, o estado tombou toda a área, incorporando ainda as reservas naturais, remanescentes da Mata Atlântica, reconhecendo a relevância de Paranapiacaba sob o aspecto histórico, cultural e ambiental.

Com a privatização da RFFSA em 1996, os funcionários ainda residentes no local são obrigados a deixar os imóveis que, desocupados, passam a ser alvo de invasões. Finalmente, no início da década de 2000, a prefeitura de Santo André compra toda a área pondo fim a esses e outros conflitos legais que dificultavam ainda mais a manutenção desse patrimônio. A partir daí, começa a elaborar um plano visando garantir o desenvolvimento sustentável da vila.

Hoje, com a conclusão de alguns projetos pilotos, entre eles o que recuperou alguns conjuntos de residências da vila Martim Smith, e com a exploração da atividade turística, Paranapiacaba volta a ser valorizada e, apesar do muito que ainda precisa ser feito em prol de sua preservação, dá os primeiros passos nesse sentido.

O desafio da preservação dos conjuntos ferroviários

Em 1995, tem início o processo de privatização dos quase vinte e dois mil quilômetros de linhas federais que compunham a malha ferroviária brasileira. O modelo escolhido priorizava o transporte de cargas em detrimento do transporte de passageiros e não previa a conservação ou a transferência do patrimônio imobiliário para as novas concessionárias. Por conta disso, até o final dos anos 1990, quando todo o sistema estava privatizado, os trechos que ainda se encontravam operantes foram extintos [5]. Em consequência disso, centenas de prédios ferroviários perderam totalmente sua função.

O fato de continuarem pertencendo ao estado, ao contrário da via permanente que passou a ser gerida por consórcios privados, agravou ainda mais o problema, uma vez que estes se eximem de conservá-los ao mesmo tempo em que, por questão de segurança operacional, impedem que sejam dados novos usos a eles, caso se localizem na área entre trilhos.

Em cidades onde não há mais movimento ferroviário, em geral, os trilhos são arrancados e as construções ocupadas por órgãos municipais. Todavia, essa solução, embora garanta a manutenção dos imóveis, também não se mostra totalmente adequada, seja pela nova destinação dos bens, nem sempre apropriada, seja por privá-los da linha férrea, razão de ser de sua construção.

No caso específico das estações, por elas se situarem, normalmente, em locais privilegiados dentro do contexto urbano, são ainda um forte referencial arquitetônico e por isso objeto de preocupação maior. Muitas delas já são consideradas patrimônio histórico, dada a sua importância sociocultural e pelo que representaram no desenvolvimento de grande número de cidades. A valorização recente da arquitetura eclética também contribuiu para o seu reconhecimento.

A conservação do patrimônio ferroviário é um problema complexo, que exige reflexão e um estudo detalhado que leve em conta as particularidades de cada conjunto, pois, se de um lado, a reinserção ou a continuidade de uso de um sítio industrial pode assumir um papel importante na regeneração ou na consolidação de novas realidades urbanas; de outro, a preservação da memória histórica e cultural das comunidades que se formaram ou deram um significativo salto econômico durante o período ferroviário também deve ser garantida.

Somente a ampliação do entendimento do que vem a ser patrimônio industrial e a importância de sua manutenção em um contexto maior pode ajudar na sobrevivência dos conjuntos ferroviários em toda a sua integridade e não apenas como vestígios isolados e soltos no tecido urbano.

Fig.1. Gare da Estação de Araraquara (fonte: Acervo Antiga RFFSA)

Fig.2. Antiga Estação da Central do Brasil em Belo Horizonte (foto: Felipe D. Gonzaga, 2015. Coleção do autor)

Fig. 3. Estação Dom Pedro II no Rio de Janeiro. (foto: João Bosco Setti, 27 de maio de 2009. Coleção do autor)

Fig.4. Estação de Santos (foto: Eduardo Albarello, 2009. Coleção AntonioSoukef Júnior)

Fig5. Estação de Bananal (fonte: Acervo Antiga RFFSA)

Fig. 6. Estação de General Carneiro, MG (fonte: Acervo Antiga RFFSA)

Fig. 7.Estação Júlio Prestes recém-inaugurada. (foto: Acervo Antiga RFFSA, 1938)

Fig. 8. Estação da Luz na década de 1930 (fonte: Acervo Antiga RFFSA)

Fig. 9. Estação de Mairinque (foto: Alexandre Pompei, 1999. Coleção Antonio Soukef Júnior)


Notas

[1] Tanto a caixa d’água para abastecimento das caldeiras quanto o depósito para carvão foram imprescindíveis enquanto as locomotivas eram movidas a vapor. No século XX, depois do advento das locomotivas movidas a diesel e à eletricidade, estes equipamentos tornaram-se desnecessários.

[2] Dependendo da complexidade dos serviços ferroviários em cada local, estes eram arranjados de modo diverso. Por conta disso, nem todos os conjuntos possuíam os mesmos equipamentos e edificações.

[3] Desde o século XIX, vários autores desenvolveram trabalhos onde procuram classificar as estações ferroviárias sob os mais variados aspectos. Dentre eles podemos destacar: César Daly (1845), Auguste Perdonnet (1855), Louis Cloquet (1898-1901). No século XX, o tema voltou a ser tratado por especialistas como Louis Vanderslice Carroll Meeks (1964) e Nikolaus Pevsner (1976).

[4] Guia da Pacobaíba foi a primeira estação ferroviária brasileira, pertencente à Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis empresa criada pelo empresário Irineu Evangelista de Souza, barão e visconde de Mauá. Foi inaugurada em 30 de abril de 1854. Lamentavelmente, encontra-se hoje em péssimo estado de conservação.

[5] Hoje, somente três trechos ferroviários possuem trens de longo percurso para passageiros: Belo Horizonte (MG) a Vitória (ES); São Luiz (MA) a Paraupebas (PA) e Curitiba a Paranaguá, no Paraná.


Referências Bibliográficas

BENÉVOLO, Ademar. Introdução à História Ferroviária do Brasil. Recife: Edições Folha da Manhã, 1953.

FABRIS, Annateresa (Org.). Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel / Editora da Universidade de São Paulo, 1987.

GRAHAM, Richard. Grã-Bretanha e o início da modernização do Brasil. 1850-1914. São Paulo: Brasiliense, 1973.

KÜHL, Beatriz Mugayar. A Arquitetura do Ferro e Arquitetura Ferroviária em São Paulo: Reflexões sobre sua a preservação. São Paulo: Ateliê Editorial, FAPESP, Secretaria de Estado da Cultura, 1998.

MEEKS, Carroll L. V. The Railroad Station: an architectural history. New York: Dover Publications, 1995.

MORAIS, Sergio Santos. A arquitetura das estações ferroviárias da Estrada de Ferro Central do Brasil no século XIX: 1858-1900. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002.

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Antonio Soukef Júnior

Professor titular e pesquisador do Programa de Mestrado Profissional em Projeto, Produção e Gestão do Espaço Urbano do FIAM-FAAM Centro Universitário. Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP, 1988), Mestre (1999), Doutor (2005) e Pós-doutor com bolsa FAPESP (2010), pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Possui experiência na área de Restauração do Patrimônio Histórico e Arquitetônico. Autor dos seguintes livros: Estação Júlio Prestes (1997); Cem Anos Luz (2000); Sorocabana: uma saga ferroviária (2001); Avenida Paulista: a síntese da metrópole (2002); Os cinco órfãos: Lar Sírio – transformando histórias (2005); Os produtos de cimento na construção do Brasil (2005); Leopoldina Railway Company: 150 anos de ferrovia no Brasil (2005); Os espaços do Sagrado (2006); Empreendimentos ferroviários britânicos no Brasil (2010); A Companhia City e a urbanização de São Paulo (2010), A Ingleza e o Inglês: a São Paulo Railway e Charles Robert Mayo (2013) e A Preservação dos Edifícios da São Paulo Railway em Santos e Jundiaí (2014). Entre agosto de 2011 e março de 2014 trabalhou na Companhia Paulista de Obras e Serviços (CPOS) no gerenciamento de projetos que envolvem preservação e restauro de bens públicos do Estado de São Paulo.


logo_rr_pp      EDIÇÃO n.2 2017       

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