A cidade de São Paulo do século XIX e os cortiços de Santa Ifigênia (1893)

11093 Views

| Solange Aragão e Thais C. S. Souza |

O artigo apresenta um breve histórico dos cortiços da cidade de São Paulo no século XIX, considerando, em particular, aqueles situados no bairro de Santa Ifigênia. O objetivo é apresentar e analisar documentos históricos que confrontam a cidade legal e a real, no que diz respeito aos cortiços. O papel dos imigrantes, as habitações coletivas, as ideias higienistas, a legislação e os documentos apresentados junto à Câmara para aprovação dos projetos e modificações para atendimento às normas dessas habitações coletivas da época são alguns aspectos abordados ao longo do texto.

Os documentos e plantas dos cortiços (1893), localizados a partir de uma pesquisa realizada no Acervo do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, seção Obras Particulares, é comprovadamente uma fonte de registro de uma cidade marcada pelas contradições sociais.   

Introdução

No Brasil, o cortiço surge e se difunde ao longo do século XIX, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Para Gilberto Freyre, os cortiços eram “habitações imundas […] onde as condições de vida chegavam a ser subumanas” [1]. Freyre destaca, ainda, com base na obra de Azevedo Pimentel, Subsídios para o estudo da higiene no Rio de Janeiro, o aumento expressivo do número de cortiços na capital do Império entre 1869 e 1888, que passa de 3,10% das habitações para 3,96% [2]. E depois de 1888, “o cortiço só fez aumentar, não tanto de área, como de densidade. Assenhoreou-se de muito sobrado velho. De muito morro” [3].

Na cidade de São Paulo, a construção e difusão dos cortiços se dá em meio às grandes transformações de fins do oitocentos e princípios do século XX, decorrentes da economia do café, que colocou a capital paulista no centro do eixo econômico [4]; da chegada da ferrovia, que fazia a ligação com o porto de Santos e facilitava as comunicações, atraindo para a capital as camadas mais abastadas da população [5]; da confluência dos imigrantes, que se fixavam na cidade, contribuindo “para o seu crescimento e expansão de seu comércio e sua indústria” [6]; da abolição da escravidão, em 1888; e do ainda incipiente processo de industrialização.

Para as camadas abastadas foram criados novos bairros a partir do loteamento de antigas chácaras, como os Campos Elíseos, que seria habitado pela aristocracia do café [7]; Higienópolis, onde foram erguidos os palacetes dos ricos fazendeiros, dos comerciantes mais prósperos, de alguns profissionais liberais e dos primeiros industriais [8]; e a própria Avenida Paulista, loteada por Joaquim Eugênio de Lima em 1891, onde se destacariam os palacetes dos “barões do café” e dos imigrantes enriquecidos com a indústria.

Para as camadas mais pobres da população, ergueram-se os cortiços:

Mas havia o outro lado das construções suntuosas […]: as edificações modestas e mesmo miseráveis dos primeiros bairros proletários. ‘Nenhum conforto – escrevia Bandeira Júnior em 1901 – tem o proletariado nesta opulenta e formosa capital’. E falava das casas infectas que se estendiam pelas pobres ruas do Brás, do Bom Retiro, da Água Branca, da Lapa, do Ipiranga. [9]

A proliferação dos cortiços na capital paulista pode ser explicada por diversos fatores, como o aumento significativo do número de habitantes da cidade, que resultou em uma demanda por habitação sem precedentes na história de São Paulo, o valor elevado dos aluguéis das casas individuais, o alto preço dos terrenos, que impedia que os trabalhadores erguessem suas próprias casas, e, por outro lado, a alta renda gerada pelo aluguel de cômodos, que fazia dessa forma de habitação um investimento lucrativo para seus proprietários.

Nabil Bonduki, em Origens da habitação social no Brasil, salienta que o investimento em moradias desse tipo permitia um alto rendimento em função do intenso aproveitamento do terreno, da economia de materiais de construção – dada pela existência de paredes comuns, da péssima qualidade dos materiais construtivos e das edificações, e da inexistência de custos de manutenção [10]. Aliás, o que caracterizava o cortiço era justamente a má qualidade das construções, a ausência de luz e ventilação nos aposentos, a ausência de saneamento, a falta de higiene, a existência de sanitários e tanques de uso comum a todos os moradores, a promiscuidade gerada pela forma de ocupação (com uma família inteira ocupando o mesmo cômodo) e a sobreposição de funções, com várias atividades realizadas em um único ambiente [11].

Nabil Bonduki lembra também que esse tipo de habitação (ou os alojamentos dos trabalhadores) não aparecia nos relatos de viagem, tampouco nas descrições da cidade:

Se as habitações populares não representassem perigo para as condições sanitárias da cidade, nada se saberia sobre elas, pois as únicas informações sobre as mesmas nos chegaram através dos técnicos preocupados com a saúde pública. Outra fonte importante, a imprensa operária, somente iria se estruturar a partir de 1900. Mesmo assim, os relatos dos sanitaristas expressam uma visão elitista […] e preconceituosa em relação aos trabalhadores. Desses relatos, sobressai o Relatório da Comissão de Exame e Inspecção das Habitações Operárias e Cortiços no Distrito de Santa Ephigênia, publicado por Mota (1894) e que é a descrição mais completa das moradias da classe trabalhadora em São Paulo no fim do século XIX. [12]

A transcrição desse relatório foi publicada na íntegra um pouco mais de cem anos depois de sua publicação original, em 1998, na forma de anexo ao texto de Carlos Lemos intitulado “Os primeiros cortiços paulistanos”, que integra a obra Habitação e Cidade [13], coordenada por Maria Ruth Amaral de Sampaio.

O relatório é composto por oito capítulos e assinado por Luís Gama, Candido Espinheira, Theodoro Sampaio, Cunha Vasconcelos e Marcondes Machado. O primeiro capítulo trata das habitações operárias da cidade de São Paulo e de seu exame e inspeção, ressaltando a necessidade de verificação das condições higiênicas dessas habitações em função da recorrência de epidemias [14]:

A última epidemia apenas dominada em junho último, pôs em evidência os seguintes fatos:
1) O mal apareceu, propagou e evoluiu onde as condições do meio, da topografia, e da população foram-lhe propícias;

2) a população operária pagou o maior tributo, por isso mesmo que as suas condições de vida impelem-na a acumular-se onde encontra maior facilidade de viver, e essa facilidade, só a obtém com sacrifício da saúde. [15]

Mas não era uma escolha da classe trabalhadora habitar nesses locais insalubres; era muitas vezes a única possibilidade existente em função do valor dos aluguéis e da necessidade de morar perto do local de trabalho.

O segundo capítulo aparece no relatório com o seguinte título: “Descrição da Zona Afetada pela Epidemia”, definindo seus limites (entre as ruas Duque de Caxias, Visconde do Rio Branco, Vitória, Triunfo e Largo General Osório) e salientando que, nesses quarteirões, as calçadas ficavam acima das áreas dos quintais, sendo imperfeita a drenagem superficial [16].

O terceiro capítulo apresenta os tipos de “estalagens, cortiços ou habitações operárias” identificados no local, com uma descrição minuciosa dessas construções:

Essas habitações são, de ordinário, do tipo cortiço, no geral, bem pouco confortáveis. O cortiço ocupa comumente uma área no interior do quarteirão, quase sempre no quintal de um prédio onde há estabelecida uma venda ou tasca qualquer. Um portão lateral dá entrada por estreito e comprido corredor para um pátio com 3 a 4 m de largura nos casos mais possíveis. Para esse pátio ou área livre se abrem as portas e janelas de pequenas casas enfileiradas, com o mesmo aspecto, com a mesma construção, as mesmas divisões internas e a mesma capacidade. Raramente cada casinha tem mais de 3 m de largura, 5 a 6 m de fundo e altura de 3 a 3,50 m com capacidade para 4 pessoas quanto muito.
São estas casinhas em geral assoalhadas, forradas nos cômodos de dormir e na sala de frente, sem outro sistema de ventilação que o natural por intermédio das janelas e portas. No cômodo do fundo, onde não há soalho nem forro, nem mesmo ladrilhos, assenta um fogão ordinário e rudimentar com chaminé que pouco funciona em vista de sua má construção ou do pouco cuidado que se tem. […]
Na área livre, que pouco mais é que um simples corredor, há assentado um ralo para esgoto, uma torneira para água, um tanque para lavar e uma latrina muito mal instalada. […]

As latrinas não guardam proporções com o número de habitantes. Jamais são essas latrinas servidas d’água, e as bacias de barro vidrado cobertas por um imundo caixão de pinho, apoiado em solo encharcado de urina fétida, completam o tipo dessa dependência bem característica do cortiço. [17]

Esse capítulo contempla ainda uma descrição da casinha (construção com frente para a rua, normalmente térrea, erguida com materiais de péssima qualidade, que abrigava indivíduos de famílias diferentes que compartilhavam a latrina, o tanque e a cozinha), do hotel-cortiço (espécie de restaurante com quartos individuais ou coletivos que davam abrigo a homens solteiros durante a noite), e dos sobrados convertidos em cortiços (construções anteriormente ocupadas pelas camadas mais ricas da sociedade, que se mudaram para bairros mais elegantes, deixando para trás os edifícios abandonados que se deterioraram com o tempo e foram ocupados por duas ou três famílias (cada uma em um dos cômodos da construção), que compartilhavam o banheiro, a cozinha e a área de serviço [18].

O capítulo IV analisa a distribuição desses cortiços e estalagens pelas ruas da “zona afetada” [19] e os capítulos seguintes (Capítulo V – Medidas a Tomar quanto aos Cortiços e Estalagens, VI – Das Providências a Tomar quanto aos Cortiços Condenados, VII – Do tipo das Habitações e Vilas Operárias, e VIII – Da Situação das Vilas Operárias) referem-se às medidas que deveriam ser tomadas pelo Poder Público no sentido de minimizar os problemas de salubridade dos cortiços e, por outro lado, adequar as habitações operárias a determinados padrões edilícios [20].

Previamente a esse Relatório, já havia algumas determinações da Câmara em relação à adequação dos cortiços estabelecidas no Código de Posturas do Município de 1886, consideradas por alguns proprietários, como se observa em anúncio do Correio Paulistano desse mesmo ano:

Vende-se na rua da Consolação, 18, cinco casas e onze cortiços, estes estão no padrão da Câmara […]. Para tratar na rua acima n.18; estas propriedades estão livres de qualquer ônus e o motivo da venda é por sua dona ter de retirar-se para a Europa a tratar de sua saúde. [21]

Tanto o Código de Posturas de 1886 como o Relatório de 1893 irão propor a construção de vilas e casas operárias para o trabalhador segundo quesitos mínimos de habitabilidade, ou seja, apresentando cômodos com ventilação e iluminação adequadas, casas com porão alto, cozinhas e banheiros individuais (um para cada residência). Alguns cortiços existentes seriam adaptados segundo essas novas propostas, transformando-se em vilas. Mas nem o Código, nem o Relatório conseguiram impedir que novos cortiços fossem construídos ou que antigos sobrados continuassem sendo transformados em cortiços. A construção das vilas deu-se paralelamente a esse processo, que persiste na atualidade.

A pesquisa no Arquivo Histórico Municipal de São Paulo: os cortiços do século XIX

As preocupações com a questão sanitária surgiram em função de epidemias, como o surto de febre amarela, entre 1873 e 1903, nas cidades de Santos, Campinas e São Paulo. Os cortiços passaram, então, a ser vistoriados e cadastrados, em São Paulo, com o intuito de solicitar reformas nos habitáculos para adequá-los aos parâmetros de higiene da época.

A área considerada no Relatório de 1893 abrange, como foi visto, o perímetro definido pelas ruas: Florêncio de Abreu, Rua da Estação (atual Rua Mauá), Alameda do Triumpho, Alameda Glette e Rua São João (atual Avenida São João). Os pontos em vermelho, no mapa a seguir, indicam os cortiços identificados na época.

Fig.1. Planta Cadastral da Cidade de São Paulo – Santa Ephigenia, levantada sob a direcção do Engenheiro V.Huet de Bacellar. (1892). (fonte: CORDEIRO, Simone Lucena (Org.). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). Arquivo Público do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010).

No Relatório de Cortiços no bairro de Santa Ifigênia (1893), há informações muito importantes sobre a área mínima dessas habitações, os valores pagos por seus moradores, as condições da precariedade e insalubridade em que viviam, os nomes dos inquilinos e proprietários, os endereços, as diferentes tipologias, entre outros aspectos. 

A pesquisa no Arquivo Histórico Municipal de São Paulo decorreu da leitura do livro Os cortiços de Santa Efigênia: sanitarismo e urbanização (1893), organizado por Simone Lucena Cordeiro, que publica as fichas originais do Relatório dos Cortiços.

O Relatório de 1893 apresenta toda a problemática habitacional da época, as condições dos cortiços visitados, seus proprietários e as fichas de cada cortiço identificado e fiscalizado pelo órgão responsável e por seus agentes. Entretanto, falta um elemento muito importante no relatório: as plantas dessas habitações.

Essas plantas são documentos fundamentais para complementar as informações já publicadas e para evidenciar a tipologia e a dinâmica desses terrenos e habitáculos. Ademais, com a pesquisa realizada, foram obtidas também informações concernentes ao inquilino, ao proprietário e ao endereço, além de observações e prescrições apresentadas na época. A pesquisa das plantas revelou, além das tipologias das plantas aprovadas, a existência de outros documentos solicitando a aprovação, bem como a exploração dos aluguéis dessas habitações precárias do século XIX.  

Para esta análise, foram selecionados alguns arquivos dentre os mais de 60 documentos localizados referentes aos antigos cortiços.

Rua Duque de Caxias, n.47 A

Na rua Duque de Caxias, n.47 A, em 1893, e número 35, em 1890 – alteração decorrente do desdobramento de lotes –, o proprietário Dr. Brasilio Machado, solicita, em documento datado de 1890, anterior, portanto, ao Relatório dos Cortiços de 1893, licença para construir cinco casas para operários conforme o padrão municipal. Vistoriado, o conjunto apresentava sete habitações, e não cinco conforme a solicitação. Assim, o fiscal aferiu e reforçou a informação de que não poderiam ser construídas mais de cinco habitações. No Relatório de Cortiços (1893), foram verificadas cinco habitações; entre seus inquilinos havia um espanhol, dois portugueses, um austríaco e uma pessoa sem identificação de origem. As habitações possuíam 4,5m de frente, 5m de fundos e 3,0m de pé-direito. A importância do aluguel era de 35$000, havendo um de 45$000. A lotação variava de três a oito pessoas, entre crianças e adultos. A observação quanto ao estado de habitabilidade era a seguinte: “carece de aceio [sic] geral”, e as prescrições para cada habitação compreendiam: “ladrilhar a área existente ao fundo; promover aceio [sic] interno, reformar o fogão, ladrilhar a área do fundo, e colocar ralo; fazer a caiação interna, realizar a drenagem no quintal e ladrilhar a cosinha [sic]”. [22]

Fig.2. Ficha do Relatório de Cortiços de Santa Ifigênia (1893) (fonte: CORDEIRO, op. cit., 2010).

As unidades possuíam, portanto, planta quase quadrangular, sendo os cerca de 25㎡ ocupados por até oito pessoas, caracterizados pela miséria, ausência de piso e falta de drenagem adequada.

Fig. 3 e 4. Descrição do pedido de licença para construção de 5 casas (fonte: Obras Particulares Livro 35 – Ano 1890. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo).

Rua dos Gusmões, n. 11 (1893)

Na rua dos Gusmões, n. 11, em 1893, havia um cortiço cujo proprietário era o sr. José Vilela Magalhães. Conforme as plantas e documentos de 1892, ou seja, anteriores às vistorias, verifica-se um corredor estreito que dá acesso às residências e a frente do lote com casas de negócio.

Fig.5. Planta dos melhoramentos de 2 casas de operários existentes no quintal da Casa n.21 da Rua dos Gusmões (1892) (fonte: Obras Particulares Livro 63 – Ano 1894. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo).

Observa-se, ainda, que as construções eram térreas, de porta e janela (com uma porta e duas janelas na fachada por unidade), com planta quadrangular e apenas três cômodos – sala de jantar junto à cozinha, na frente, e dois quartos, nos fundos, sem janelas.

No Relatório dos Cortiços de 1893, constam dados de oito cubículos, ou casinhas, situados no referido lote com inquilinos portugueses e espanhóis, que pagavam 30$000 de aluguel para habitar em edificações de 52 a 57㎡. As prescrições para este cortiço eram: regulamentar a área interior, ladrilhar, melhorar a latrina cimentando-a ao redor e empilhar melhor a madeira em depósito na área.

Fig. 6 e 7. Fichas do Relatório de Cortiços de Santa Ifigênia (1893) (fonte: CORDEIRO, op.cit., 2010).

Foi localizado um registro sobre o mesmo lote em 1905, que solicita melhoramentos para as casas de operários já existentes (como a de n.21, em 1892). A planta apresentada nesse registro não identifica o lote como um todo, nem sua situação naquele momento. Consta apenas: planta aprovada, armazém para depósito, dois quartos e uma latrina.

Fig. 8. Planta (1905) (fonte: Obras Particulares, Livro 411 – Ano 1905. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo).

Rua dos Gusmões, números 27 e 29 (1893)

De origem alemã, o proprietário Henrique Schifferdeker teve seu cortiço identificado no Relatório dos Cortiços de 1893, com seus nove cubículos, ou casinhas, alugados em sua maior parte para alemães, que pagavam a importância de 28$000 e 30$000. Em cada habitáculo moravam de quatro a onze pessoas, entre adultos e crianças, totalizando trinta e seis pessoas, correspondendo a um cortiço bastante adensado. As observações quanto à habitabilidade eram:

Este cortiço occupa em grande terreno ainda não regularisado, faltando ladrilhar, faser sargetas e mais melhoramentos. Os cubículos do fundo bem como os que formam em grupo no meio carecem de aceio geral e retoques. [23]

Fig. 9. Ficha do Relatório de Cortiços de Santa Ifigênia (1893) (fonte: CORDEIRO, op. cit., 2010).

Em outra planta encontrada nos arquivos, datada de 1900, consta o mesmo nome do proprietário da construção n. 25 A, podendo ter ocorrido uma unificação dos lotes (que, em 1893, referiam-se aos números 27 e 29) e desdobramentos de lotes vizinhos. Todavia, a planta pertencente ao mesmo proprietário apresenta um armazém no térreo e uma casa unifamiliar no piso superior. Assim, é possível supor também que o cortiço, identificado em 1893, e localizado nos números 27 e 29, ocupava o lote ao lado (como podemos ver na planta), de acordo com a identificação do lote vizinho: “casa do mesmo dono, pátio e uma oficina”; ou até mesmo que as construções foram demolidas e construídas outras em seu lugar.

Fig. 10. Planta (1905) (fonte: Obras Particulares Livro 270 – Ano 1900. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo)

De fato, nas descrições de cortiços encontradas na literatura do período (de fins do século XIX e princípios do século XX), observa-se que era muito comum o proprietário morar na construção voltada para a rua e alugar os cômodos localizados no interior do quarteirão, distanciados desse espaço público.   

Rua dos Gusmões, n. 70. (1893)

Na Rua dos Gusmões, n. 70 (1893), de acordo com os documentos e plantas de 1898, havia uma construção de propriedade de Carlos Girardi ou Gilardi. Contudo, em outro documento encontrado com este endereço, há um pedido de alinhamento em nome do mesmo proprietário e, em resposta, há uma notificação de que não conhecem o requerente. Na planta, é possível identificar que um dos lotes vizinhos pertence ao mesmo dono, porém nesta edificação não há indícios de uma edificação coletiva (cortiço), e sim, de depósito, negócio, quintal, sala, quarto, wc e fogão, com os cômodos encarreirados, sem abertura nas laterais, em uma construção estreita e comprida. No Relatório de Cortiços de 1893, há uma observação relevante quanto a este imóvel:

Cubículos feitos de tabua e pintadas de piche, e levantados do chão 0,70 m. Área não ladrilhada, tem uma torneira, e as casinhas não tem escada de acesso. Estes commodos, são dependencia de uma oficina, não são cortiços. Falleceu aqui um doente de febre amarela em 7 de maio. Commodos cobertos de zinco e sem forro. Oficcina de ornamentos de zinco. Commodos sem moradores. A vistoria deste imóvel foi feita em 21 de julho 1893. [24]

Neste endereço, existe ainda o registro de uma moradora polaca com quem moravam um adulto e duas crianças, pagando-se 55$000 pelo cômodo.

Fig. 11. Ficha do Relatório de Cortiços de Santa Ifigênia (1893) (fonte: CORDEIRO, op.cit., 2010).

Fig.12

Fig.13

Fig.14

Fig. 12 a 15. Planta (1898) (fonte: Obras Particulares Livro 201 – Ano 1898. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo.

Rua dos Gusmões, n. 101 (1893)

Neste endereço, identificado no Relatório de Cortiços de 1893, cujo proprietário era Júlio Viccari, havia quatro cubículos ou casinhas, com inquilinos suecos, que pagavam 25$000 por cômodos em boas condições de aceio [sic]. Porém, no documento encontrado no Arquivo Histórico Municipal, datado de 1896, a planta apresenta duas casas de operários, com quintal coletivo (pátio).

Fig.16. Planta (1896) (fonte: Obras Particulares Livro 116 – Ano 1896. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo).

Rua Santa Efigênia n. 97. (1893). Proprietário Mme. Olivier (francesa)

No Relatório de Cortiços de 1893, o nome de Mme. Olivier (francesa) consta como proprietária de imóvel com a seguinte descrição: “o cortiço tem uma venda na frente, onde o italiano Domingos Bondini, tem uma casa de pensão. A área livre está cimentada, tem 2 ralos, um poço em uso e latrina em más condições, e um galinheiro”. [25] Na ficha do relatório é possível verificar nove cômodos, sem menção da importância de aluguel e dos inquilinos.  

Os documentos encontrados no Arquivo Histórico Municipal, classificados como documentos avulsos de 1897, apresentam o pedido de Maria Mativeir que gostaria de executar “bonificações”, demonstradas em planta, em seu Hotel do Trentin. Em resposta tem-se o seguinte texto: “[…] sendo um hotel de baixa classe e seus compartimentos semelhantes ao cortiço, solicita que a planta esteja em acordo com as normas municipais”. [26]

Na análise da planta, verifica-se que havia, de fato, nove quartos encarreirados, com abertura apenas junto à fachada da porta de entrada, a qual se voltava ao quintal lateral, além de apresentar um comércio na frente, utilizado como passagem para os quartos. Denominava-se “hotel”, mas possuía características espaciais e de disposição dos cômodos semelhantes ao cortiço horizontal propriamente dito, sem qualquer indicação da localização do banheiro comum, das latrinas ou do tanque.

Fig.17

Fig.18

Fig. 17 a 19. Documentos avulsos (1897) e Obras Particulares Livro 178 – Ano 1897 (fonte: Documentos avulsos e Obras Particulares. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo)

Rua General Osório, n.55 (1893). Proprietário Carlos Gilardi

Este lote é identificado no Relatório de Cortiços como um cortiço com cinco cubículos ou casinhas, onde italianos e portugueses viviam e pagavam 45$000 de aluguel por cômodo. As observações junto à ficha do relatório eram as seguintes: “casinhas de frente para a rua, todas com porta e janela. Área insuficiente ao fundo com um ralo, e uma latrina desabrigada”. [27]

Os documentos e planta apresentados em 1898, ou seja, cinco anos depois da vistoria, em 1893, apresentam a dimensão da área adquirida por Carlos Gilardi, na Rua General Ozório. Neste lote, segundo o pedido de licença, o proprietário pretendia construir quatorze “casas operárias”, com sala, quarto, cozinha, quintal e banheiro; entretanto, não havia qualquer solicitação do projeto construído para comparação com o novo. Assim, esta análise considera apenas este último que não se sabe ao certo se foi executado.

No desenho, o lote aparece com duas entradas e seus confrontantes são o mesmo dono. É possível observar que a entrada ao conjunto de casas se dá por meio de um corredor estreito e único, formando um grande pátio no interior da quadra. As casas apresentam os cômodos encarreirados, com o banheiro situado no fundo do terreno. Para ir à cozinha, portanto, era necessário passar pelo quarto primeiro.

Essa disposição, com as casas lado a lado ao longo de pátio, resultava nas paredes em comum, que diminuíam o custo da obra, como foi visto. E o requerimento de ampliação do cortiço é uma evidência da alta rentabilidade desse tipo edificatório.

Fig.20

Fig. 20 e 21. Plantas (fonte: Obras Particulares Livro 200 – Ano 1898. Arquivo Histórico Municipal de São Paulo)

A questão da preservação dos cortiços

A maioria dos cortiços analisados neste artigo não integra mais a paisagem urbana da capital paulista. Embora sejam parte da história da cidade de São Paulo, sendo característicos de um período histórico, em nenhum momento se cogitou na sua preservação. Pelo contrário, na passagem do século XIX para o século XX predominou a ideia da demolição dos cortiços existentes. É fato que essas construções nem sempre apresentam qualidade arquitetônica ou construtiva, mas têm importância num contexto histórico em que o espaço urbano, em poucas décadas, se dividiu entre a cidade dos palacetes do ecletismo e a cidade das vilas operárias, das fábricas e cortiços, sendo marcado, a partir de então, pela segregação socioespacial que permanece na atualidade.

Sem as construções, para uma investigação e análise mais aprofundadas desse tipo de habitação, alguns documentos se tornam fundamentais para sua compreensão, como o Relatório de 1893 e as plantas do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, que possibilitam um maior entendimento da distribuição dos cômodos e do arranjo espacial. Além destes, pode-se recorrer a outras fontes documentais, como os anúncios de jornal publicados no período ou mesmo os textos literários, como crônicas, romances e memórias, que dão voz e vida ao lugar, no sentido do cotidiano, do uso do espaço, de toda a problemática humana inerente a esse tipo de habitação, a esse modo de vida.

De princípios do século XX, há outros remanescentes de um tipo de cortiço: o sobrado ou a casa térrea transformados em cortiço, edifícios que apresentam, inclusive, determinadas características arquitetônicas, como ornamentos neoclássicos ou o ladrilho hidráulico, semelhantes aos utilizados nos palacetes, em situação que poderia suscitar sua preservação. Estes ainda estão ocupados por diversas famílias, sem as quais, entretanto, perderiam a conotação de cortiço; condição que, neste caso, não está em sua materialidade, mas em seu modo de uso e em sua função. Alguns desses exemplares poderiam, portanto, ser preservados, todavia, talvez deixassem de ser cortiços no sentido estrito do termo.

Cabe, aqui, outra questão relevante no que concerne à preservação dessas construções: a maioria dos palacetes do ecletismo, que correspondia às construções mais ricas do período e a exemplares notórios da arquitetura eclética, foi demolida; as próprias vilas operárias foram dando lugar aos edifícios de apartamento e, quando preservadas, muitas apresentam estado avançado de degradação, inclusive as tombadas, como a Vila Maria Zélia, de 1912, uma das vilas operárias mais significativas da cidade de São Paulo, que se descaracteriza e degrada ano após ano, sem as obras de restauro necessárias. Diante desse panorama de descuido e descaso com o nosso patrimônio, é difícil pensar na preservação de construções que não eram nobres nem icônicas, mas que também compuseram a história da cidade de São Paulo e a história de vida das pessoas.

Quis tombar esse patrimônio, mas o casarão foi considerado feio pelas autoridades (Nireu Cavalcanti – arquiteto e historiador, sobre um cortiço do Rio de Janeiro). [28]

Considerações finais

Os documentos localizados no Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, tanto as fichas do Relatório de 1893, como as plantas das construções identificadas como cortiços nesse relatório, são uma fonte documental importantíssima para um maior entendimento da real situação da moradia operária do período, assim como outras fontes históricas mencionadas.

Observa-se, pela análise dessa documentação, que uma parte considerável dos inquilinos era composta por imigrantes – suecos, alemães, espanhóis, austríacos e mesmo portugueses, que pagavam altos aluguéis para sobreviver em moradias descritas como sujas, sem piso nas áreas úmidas e sem drenagem adequada.  

A comparação das informações contidas no Relatório de 1893, nas fichas e nos desenhos de planta revela a adaptação de algumas construções aos padrões da Câmara, a ampliação de alguns cortiços e eventuais divergências entre a documentação aprovada e o espaço construído. 

A análise das plantas comprova a exiguidade de espaço, comparativamente ao número de habitantes, desses habitáculos mínimos e a relação da área construída com o pátio. Alguns documentos apresentam, inclusive, o desenho das fachadas de porta e janela, com uma imagem relativamente precisa do cortiço tipo corredor – os materiais precários adotados provavelmente acentuavam a baixa qualidade das edificações e do espaço. 

Esses documentos correspondem, de fato, a um registro da habitação operária da passagem do século XIX para o século XX, dada a escassez de remanescentes desse tipo edificatório que datam desse período em particular. No processo de transformação da cidade, de requalificação de determinadas áreas, de substituição de construções horizontais por edifícios, a maior parte dos cortiços analisados no Relatório de 1893 foi demolida ou descaracterizada enquanto tal. A possibilidade de preservação de algumas dessas construções que permaneceram na paisagem traz à tona questões como a representatividade e o valor histórico desses conjuntos de habitáculos mínimos, que não apresentam valor estético; ou mesmo da casa térrea ou do sobrado transformados em cortiços e que, após um trabalho de restauro, poderiam perder seu significado atrelado ao termo e à forma de habitar o espaço. Destaca-se, ainda, a dificuldade encontrada por arquitetos e historiadores de comprovar, diante das autoridades e da sociedade de um modo geral, a importância desse tipo habitacional, no contexto histórico da cidade de São Paulo.


Notas

[1] FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos [1936]. 16.ed. São Paulo: Global, 2006, p.300.
[2] Idem, p.301.
[3] Idem, p.301.
[4] PRADO Jr. Caio. A cidade de São Paulo. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, p.35.
[5] Idem, p.36.
[6] BRUNO, Ernani da Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, p.907.
[7] PORTO, Antônio Rodrigues. História urbanística da cidade de São Paulo. São Paulo: Carthago & Forte, 1992, p.57.
[8] INSTITUTO CULTURAL ITAÚ. Bairro de Higienópolis. Cadernos cidade de São Paulo. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1996, p.13.
[9] BRUNO, Ernani da Silva, op. cit., p.956.
[10] BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: FAU-USP, 1994, p.27.
[11] Relatório de 1893 apud LEMOS, Carlos. Os primeiros cortiços paulistanos. In: SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (coord.). Habitação e cidade. São Paulo: FAU-USP: FAPESP, 1998, p.26.
[12] BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade: Fapesp, 1998, p.21-2.
[13] SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (coord.). Habitação e cidade. São Paulo: FAU-USP: FAPESP, 1998.
[14] Relatório de 1893 apud LEMOS, Carlos. Os primeiros cortiços paulistanos. In: SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (coord.). Habitação e cidade. São Paulo: FAU-USP: FAPESP, 1998, p.20.
[15] Idem, p.21.
[16] Idem, p.22.
[17] Idem, p.24-5.
[18] Idem, p.26.
[19] Idem, p.27.
[20] Idem, p.28-37.
[21] Correio Paulistano, 01/07/1888. Acervo do Estado de São Paulo.
[22] CORDEIRO, Simone Lucena (Org.). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). Arquivo Público do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2010, p.118.
[23] Relatório dos Cortiços de Santa Ifigênia, 1893 apud LEMOS, Carlos. Os primeiros cortiços paulistanos. In: SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (coord.). Habitação e cidade. São Paulo: FAU-USP: FAPESP, 1998.
[24] CORDEIRO, Simone Lucena (Org.), op. cit., p.139.
[25] Idem, p.158.
[26] Documento do Arquivo Histórico Municipal, OPA 178, ano 1897 – Obras Particulares.
[27] CORDEIRO, Simone Lucena (Org.). op. cit., p.123.
[28] CAVALCANTI, Nireu. Entrevista concedida para O Globo. In: MENDES, Taís. Cortiços do século XIX sobrevivem em meio à modernização do Rio. O Globo, 10/11/2013. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/corticos-do-seculo-xix-sobrevivem-em-meio-modernizacao-do-rio-10737056. Acesso em: 10/07/2018.


Referências Bibliográficas
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade: Fapesp, 1998.
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo: FAU-USP, 1994.
BRUNO, Ernani da Silva. História e tradições da cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
CAVALCANTI, Nireu. Entrevista concedida para O Globo. In: MENDES, Taís. Cortiços do século XIX sobrevivem em meio à modernização do Rio. O Globo, 10/11/2013.  Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/corticos-do-seculo-xix-sobrevivem-em-meio-modernizacao-do-rio-10737056. Acesso em: 10/07/2018.
CORDEIRO, Simone Lucena (org.). Os cortiços de Santa Ifigênia: sanitarismo e urbanização (1893). Arquivo Público do Estado de São Paulo. São Paulo, Imprensa Oficial, 2010.
Correio Paulistano, 01/07/1888. Acervo do Estado de São Paulo.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos [1936]. 16.ed. São Paulo: Global, 2006.
INSTITUTO CULTURAL ITAÚ. Bairro de Higienópolis. Cadernos cidade de São Paulo. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1996.
LEMOS, Carlos. “Os primeiros cortiços paulistanos”. In: SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (coord.). Habitação e cidade. São Paulo: FAU-USP: FAPESP, 1998.
PORTO, Antônio Rodrigues. História urbanística da cidade de São Paulo. São Paulo: Carthago & Forte, 1992.
PRADO Jr. Caio. A cidade de São Paulo. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

Solange de Aragão é arquiteta, urbanista, mestre e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado em História do Brasil pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pós-doutorado em História da Arquitetura pela FAU-USP. Professora Doutora de Arquitetura da Paisagem da Universidade Nove de Julho, em São Paulo. Autora de Ensaio sobre o jardim (Global, 2018) e Ensaio sobre a casa brasileira do século XIX (Edgard Blücher, 2011).

Thais C. S. Souza é arquiteta e urbanista, mestre e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), especialista em Patrimônio Arquitetônico: Preservação e Restauro pela Universidade Cruzeiro do Sul. Professora Doutora do IFSP – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil.


logo_rr_pp      v.2, n.4 (2018)      

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

image_pdfgerar PDFimage_printimprimir